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junho 17, 2023

A NOITE UM BLOCO ( Alice Sant 'Anna )

 de madeira pintado de preto

fecha os olhos e tenta se aproximar
perceber seu tamanho, profundidade
se tem cheiro se é maciço
sem porta para entrar ou sair
o modo como a luz bate
suave, meia-luz, a mínima
necessária para se ver o bloco
se não fosse por ela o bloco
mal existiria, seria tudo um mesmo escuro
sem contorno entre montanha
seus pés e meio-fio, o bloco
cabe no seu quarto em cima da cama
ainda sobra algum espaço nas laterais
uma nesga de lençol, mas não
o suficiente para caber
ela também

RECORDAR É PRECISO ( Conceição Evaristo )

 O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos

A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.

HABITAT ( Carina Carvalho )

 teve uma vez que minha miopia

feriu a coragem com um golpe seco
na lombar.

desde então, para mim qualquer teia
é imensa ameaça, como esta viagem
de dois dias e oito pernas longas
que se movem uma por vez.

tomando o meu corpo.
sumindo comigo para dizer
em particular: não é aqui. teu lugar não é.

te procuro com o coração miúdo
e os olhos desistentes, fechados.
pedindo para não apontar mais
os bichos que constroem suas casas
no canto da madeira,
na casa dos outros.

pedindo, por minha vez,
– estrala minhas costas.

ABRIL ( Gianne Lorena )

 no vinil

pelo universo, Jhon, diz:
– nobody ever loved me like she does…

lembrei
da madrugada de Abril
de quando Costinha tocava Strokes
de quando avisei
que não haveria fim

fitou,
e, como se não existisse o tempo
seguiu, me beijando
e, em quatro horas
eu me vi
amando

à face de me perder
e sem querer, querendo
me perdi no erro
e nele, persisti

gritei pelas ruas
chorei, com o peito ardendo
e esse tal erro
foi o acerto
que mais me fez

sorrir


PAPEL DE SEDA ( Ana Martins Marques )

 Houve um tempo em que se usava

nos livros
papel de seda para separar
as palavras e as imagens
receavam talvez que as palavras
pudessem ser tomadas pelos desenhos
que eram
receavam talvez que os desenhos
pudessem ser entendidos como as palavras
que eram
receavam a comunhão universal
dos traços
receavam que as palavras e as imagens
não fossem vistas como rivais
que são
mas como iguais
que são
receavam o atrito entre texto
e ilustração
receavam que lêssemos tudo
os sulcos no papel e as pregas das saias
das mocinhas retratadas
as linhas da paisagem e o contorno das casas
eu receava rasgar o papel de seda
erótico como roupa íntima

SENHA E CONTRASSENHA ( Ana Martins Marques )

 Uma palavra

deve-se pagar
com outra palavra
não necessariamente
do mesmo tamanho

um segredo se paga
com outro segredo
ainda que
inventado

isso não encontras
nos livros de etiqueta
nem nos manuais
de economia doméstica

a senha para entrar no teu corpo:
por que
por tanto tempo
me negaste?

AMOR NÃO FEITO ( Ana Martins Marques )

 No centro do que me lembro ficou

o amor não feito:
o que não foi rói o que foi
como a maresia

casa onde não morei país invisitado
praia inacessível avistada do alto
o que fazer do desejo
que não se gastou?

alegria não sentida amor não feito
prazer adiado sine die
palavra recolhida como um cão
vadio gesto interrompido beijo a seco

como parece banal agora
o que o barrou
compromissos decência covardia
não foi nada disso que ficou

mas precioso aceso
e perfeito
restou o desejo do amor
não feito


OLHAR DE AMOR ( Regina Lyra )

 Aquele olhar matreiro e ofegante

Trazia por trás das dunas o regaço.
Com o sorriso e o sonhar dos amantes,
Acolheram-se efusivos num abraço.

Sem precisar da palavra falada
O olhar, emudecido de carinho,
Vinha, feito passarinho,
Beijar o olhar lânguido, amado.

Naquele entardecer mágico,
Nada se via de mais grandioso
Do que aquele encontro vestal.

Todavia, o olhar de desejo e assédio
Suspirou nos sentidos desnudados:
E se amaram em uma noite profana.

ADIAMENTO ( David Mourão - Ferreira )

 Olhar-te bem nos olhos: que voragem!

Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos a coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar da viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência…
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.