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janeiro 31, 2024

NOITE POR TI DESPIDA ( Casimiro de Brito )

 Adulta é a noite onde cresce

o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos
                                  coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.

janeiro 29, 2024

PANDORA ( Graça Pires )

 De múltiplos espelhos emergiu a fêmea. 

Divina e humana. 
Estratagema de zeus para ser perverso, 
no tempo em que os homens 
e os deuses se divertiam juntos. 
Era irrelevante acorrentar-lhe os pulsos. 
Suas mãos eram aves 
ansiosas de voos ousados. 
Os ventos, deslumbrados, 
soltaram a luz e a sombra 
em seus dedos que, sem pudor, 
destaparam o vaso da inocência. 
A palavra culpada enroscou-se-lhe 
no corpo como um estigma sem fim. 
E apenas bem no fundo dos seus olhos 
permaneceu, para sempre, a esperança 
de ser salva ou de salvar. 


EM SEARA ALHEIA ( Lília Tavares )

 V


Deita-te comigo. 
O linho sobra. 
A noite também. 

IX 

Não me deixes entre as folhas. 
Sou árvore e tenho nos ramos 
o cio das aves em tardes azuis. 

XIV 

De todas as palavras possíveis 
escolhi beijo. O teu. Fica. 
Não leves contigo as nossas bocas. 

DOS DESEJOS (Graça Pires de O Improviso de Viver)

 Enfrentamos o rosto ansioso dos desejos 

com o enigma da posse 
no limite de cada gesto. 

Inquietos falamos longamente 
até a lentidão das mãos 
insubmissas nos perturbar. 
Até recolhermos nas palavras caladas 
a seda dos murmúrios. 
Até que se solte o rio já sem margens 
tão dono de seu júbilo. 

Pode ser nosso o ofício da ternura. 
É minha a ânfora da sede.

MEMÓRIAS DE ISADORA V (Graça Pires )

 Sobre o esguio molde de minhas pernas

acoitei o ritmo imprevisto de todos os rumores.
Com elas soergui o corpo até ficar íntima do chão.
Sobre elas me suspendi em movimentos leves,
sensuais, clandestinos quase.
Para não ruir.
Para aprisionar os ventos.
Para silenciar os medos.
Os habituais saberes do bailado
não me pertenceram nunca.
Preferi imitar o desassossego da natureza
como se uma incompleta dança
me nascesse nos ossos até se esvair,
entreaberta, no mais fulgurante cansaço.

janeiro 21, 2024

DELICADEZA ( Ana Rüsche )

 meus desejos,

que me imobilizasse
com fitas brancas de cetim
para que elas me deixassem
talhos e cortes na carne.
mas ele me amarrava
com cordas grossas e ásperas
e me largava com nós frouxos.

meus desejos,
que me espancasse
com uma vareta de marfim
e quebrasse todas as minhas costelas,
não eram dele mesmo?
mas ele me macerava,
no chicote macio de couro
que me marcava com lanhos engraçados.

meus desejos,
que me esquartejasse
com quatro alvos corcéis
e me desfizesse em pedaços.
mas ele me penetrava,
me xingava,
fazíamos amor e
suspirando, dormíamos sem sonhos.

AS VESTES ( Iracema Macedo )

 Enfrentei furacões com meus vestidos claros

Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus
                                                [ laços.

 

O TEU DEMÔNIO ( Iracema Macedo )

 O teu demônio me segue

anos a fio
ele tece flores para mim
divide meu corpo em partes
Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
eu aparo suas bordas seu rabo seus chifres
O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado
O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre
O teu demônio vai embora hoje
eu fujo dentro dele a galope
eu vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda
Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma

RESPOSTA AO ANJO GABRIEL ( Iracema Macedo )

 Agora que aprendeste a incendiar-me

e me adivinhas inteira dentro do vestido
agora que invadiste a sala e o chão de minha
                                       [ casa
agora que fechaste a porta
e me calaste com teus lábios e língua
peço-te afoitamente
que me faças assim
ínfima e sagrada
muito mais pornográfica do que lírica
muito mais profana do que tântrica
muito mais vadia do que tua

IDÍLIO ( Iracema Macedo )

 Entre notícias antigas e muralhas

construí com você
um amor feito alucinadamente de palavras
Meus versos seduzem os seus
seus versos aliciam os meus
Coloquei nossos livros juntos na estante
para que se toquem
e se amem clandestinamente
durante as madrugadas

O POEMA DE LAURA ( Iracema Macedo )

 Essa moça que amei

na tarde fria
não a amo mais

Aos poucos
estou esquecendo seu rosto,
suas formas, seu modo obsceno
de gritar meu nome em meio ao gozo

Estou esquecendo suas mãos, seus gestos,
Seu modo de fugir, sua alegria.
A cada dia que passa
eu a esqueço mais
como se ainda fosse amor o que sentisse

Estou esquecendo as águas
onde a vi banhar-se
esqueço as vestes claras, a trança úmida,
e os pequenos defeitos de seu corpo

Se me perguntarem se era feia ou bonita,
não sei, não lembro
tampouco sei dizer se ela era triste

Mas às vezes vinha pela tarde
feito um anjo sem abrigo
e meu amor mordia suas asas

Assim, ferida, ela ficava
presa sob meus cuidados
imune à ira dos deuses e do tempo

Mas me escapou um dia
Ah, essa moça que amei na tarde fria

VINHO (Déborah de Paula Souza)

 VINHO

rosa vermelha no copo
nem sabe que é obscena

perfuma, abre
rouba a cena

janeiro 20, 2024

VELEIROS BRANCOS ( Ledusha B. A. Spinardi )


Alheia confiro a curva bem feita dos meus pés
minhas coxas que guardam o último sol
onde se encontram

A lua acena veleiros brancos
beijando a janela escancarada

Faz muito calor por aqui
faz calor nas dunas do meu corpo
que sei, pressentes
como pressinto a delicada febre das tuas mãos

No umbigo da noite destilo vapores
lavanda e mirra para que me queiras
tanto
e temas quase nada

No teu silêncio de homem
sinto que vislumbras minhas veredas
Assim permaneço recostada
os travesseiros de pluma afagando o dorso
e te quero dessa forma inescrutável
entre o tesão e a perplexidade.


 

ENXOVAL ( Déborah de Paula Souza )

 jamais conheci esse homem

que com certeza me dará
a parte de sua vida — a mais doce
um disco de debussy
gomos de mexerica
beijos na boca seu sexo sua lívida
expressão de amor

jamais conheci esse homem
com quem terei um filho um cachorro um aparelho de chá
a louca intimidade das dores de garganta

(e por jamais tê-lo conhecido
é que me preparo
no ritual patético das moças
separo um vidrilho
um corpo debruado em cio
a maternidade branca das louças)

COM O DIABO NO CORPO ( Déborah de Paula Souza )

 De forma que entra

sem cerimônia
no corpo da mulher
bufando como animal
com chifres quase alados

De modo que toca o intocável
e bole e dança
até que ela lhe prepare
com alegria e gritos
perfumes, crianças
e toda sorte de escândalos

De maneira que agarra
seus cabelos
e respira como um bicho
recendendo a sândalo
e molha seu corpo
com saliva e cuidados

É assim que penetra o diabo
fundo como punhal ou lembranças
e só dentro da mulher ele alcança
a paz e seus contrários

Então é homem, filho, calmaria
santo profeta de velhas mesquitas
irmão do que é belo e são
senhor das coisas benditas

MODO DE AMAR ( Silvana Guimarães )

 não fales das tempestades

que colhes por debaixo dos
meus frágeis vestidos escuros
(não contes como sou feita de escuros)
nem da fúria com que os arrancas de mim

não fales do meu anel
de como envolve teu dedo
(não contes que dedo)
nem o que eu faço com ele
pra te ouvir chorar

VÊNUS EM ESCORPIÃO ( Luíza Mendes Furia )

 XXIV - ORGASMO

Escuto
este silêncio no meu sangue

rio suaviloqüente na noite
azul e brilhante

É assim que
aflui aos lábios:
com delicadeza

E propaga
em longas ondas pela treva
sua música de seda.

VÊNUS EM ESCORPIÃO ( Luíza Mendes Furia )

 XXIII

Pões no meu lábio a cor escura das cerejas
Eu coloco a língua purpúrea nos teus lábios
para colher a fruta oculta no teu ventre
embebedar-me da doçura do seu sumo.

Então derramas vinho em minha boca
depois lambes o rubro dos meus seios
e há um roçar de pétalas vermelhas
transmutando seu perfume em chamas lentas

Até que irrompa o incêndio na penumbra
e suba, incontrolável, um grito ardente.

Depois, tudo serena em meio às cinzas
e mergulhamos no sono oloroso e fundo
com que os deuses presenteiam suas fênix.

VÊNUS EM ESCORPIÃO ( Luíza Mendes Furia )

 XXI

Tua língua
é chama e pétala
na minha boca

Uma orquídea
rósea e fulva
se alastra no meu ventre

Selvagem e pura
no meu corpo
te enraízas.

VÊNUS EM ESCORPIÃO ( Luíza Mendes Furia )

 XVI

Acaricia
meu rosto com teu rosto
meu sexo com teu sexo
Ondula
meu mar, me salga,
me trespassa, reinaugura
a aurora entre meus seios

Venta em meus cabelos
Chove no meu peito
Semeia e colhe

Acolhe
minhas mãos, meus olhos,
faz-me ser tua

Porque eu desejo o teu desejo
Porque eu só me encontro quando me procuras.

VÊNUS EM ESCORPIÃO ( Luíza Mendes Furia )

 X

Não. Não há nenhuma emoção.
Apenas uma folha seca sob a blusa.
E no lugar do sexo uma concha oca.

Prazeres calcinados
Paixão cauterizada
como uterina ferida.

Nenhuma emoção. Nenhuma voz
a sacudir o corpo em fogo ou lágrimas
ternura ou espasmos.

Apenas a esperança muda
de que ninguém pise na folha seca
sob a blusa.

FLUXO ( Solange Firmino )

 Os dias se movimentam

em procissão contínua
águas de Heráclito
nos diferentes rios
relógios nas longas noites
siderais
astros e seus atos
em danças geométricas

Estrelas se formam
a cada instante que
inspiro
respiro
raios de sol tocam
seus acordes
nas frestas dos ventos
que copulam nas asas
dos pássaros
meu filho sorri no
mistério da existência

Silêncio ruído solstício
morte nascimento guerra
gira o mundo
em ritmo novo
repetição
sempre igual.

ESFINGE ( Solange Firmino )

 Decifra meu enigma

e toda a verdade,
toda a essência
por trás do verso.

Segue pela trilha do meu corpo
e revela a paisagem escondida.
Repousa sem tédio no meu abraço.
Implora pelo princípio e fim
de cada ato.

Descobre o segredo que habita
onde me esquivo,
onde a pergunta é só disfarce,
reverso.

Se me escondo,
é para devorar melhor.


DEUS E O DOMINGO ( Eunice Arruda )

 Eu ia ser feliz

domingo
naquele tempo bastava pouco
Não sabia que no
domingo
é fácil chover
e muito difícil viver
Ah, eu ia ser feliz
Mas
domingo Deus descansa
e a gente sofre mais

TINHAS UM NOME DE TRIGO E DE SILÊNCIO (António Ramos Rosa)

 Tinhas um nome de trigo e de silêncio

e no círculo da tua íris a melancolia
de um verde leve e de um lilás suave.
O teu sorriso cintilava como o oiro da penumbra
O vento da sombra despenteara-te os cabelos
e o negro ramalhete de uma madeixa esguia
pendia sobre a tua fonte pálida e indecisa
Aproximei-me do seu rosto como uma vogal branca
e acariciei-o como se acaricia uma nascente de linho
ou uma pequena estrela limpa uma andorinha branca
e com os meus dedos soletrei-lhe todas as minúcias mágicas
Pronunciou então o meu nome num murmúrio de seda
ou como um óleo de lua. O meu sangue deslizou
sob uma chuva de pólen para o lábio de uma praia
entre a primavera e o outono da ternura
Minha pequena estrela que julgara perdida
erguia-se da água com os ombros esguios
e da fonte dos ventos mais suaves
como uma ânfora de linfa ou um ramo de oiro pálido

janeiro 19, 2024

MEMÓRIA SOBRE OS TEUS OLHOS ( António Gedeão )

 Magníficos.

como os jactos que aguardam no aeroporto o iminente sinal da partida,
seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes,
o subsolo da imagem pressentida.

Perfurantes como as brocas dos mineiros,
pontas de aço-vanádio
que o cubro alcançam sem perder o gume,
um fogo o olhar o queima, um mar invade-o,
um lume feito de água, água de lume.
Súbito, seus grandes olhos imensos descolam e levantam voa.
Ei-los que sobem.

Seu movimento é como se apenas as coisas deles se afastassem,
é como se move o tempo, sem agravo nem estrago,
como boiam as folhas na dormência do lago,
como bate o coração do homem enterrado no chão.

Na estática subida a que se entregam
são o próprio silêncio em que navegam,
são a curva do espaço,
a quarta dimensão.

Cá em baixo,
onde as superfícies se avaliam
multiplicando pi por érre dois,
um formigueiro de bois
desenha na planície coloridos talhões.
Cumprem-se as sementeiras.
As cores são as bandeiras;
os regos, os limites das nações.

Um rabiar de células,
Cultura de bactérias num capacete de aço,
ziguezagueiam, obstinadas como libélulas,
num charco de sargaço.

Entretanto,
seus grandes olhos imensos olham, e olhando,
no desígnio frontal que não hesita nem disfarça,
com linhas de olhos vão bordando a talagarça.

Sento-me à secretária,
preparo-a, limpo-a, esfrego-a
na aflita busca do mais puro espaço,
e com o esquadro e a régua,
o lápis e o compasso,
construo os olhos d'Ela.

Deliberada e escrupulosamente
ergue-se a construção de arquitectura mansa,
quase cinicamente,
como quem premedita uma vingança.

(Aliás
o engano, a ilusão,
a mentira, a falsidade,
o perjúrio, a invenção,
tudo, em Amor, é verdade.)
Eis os mais lindos olhos deste mundo.
O Amor os fez.

Proas de galeões de velas pandas,
meninas a correr que chegam às varandas
olhando o mundo pela primeira vez.

Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero
na plácida inocência,
um miligrama de cianeto, morte sem desespero,
acicate da humana permanência.

Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca
de plátano, uns veios
de clorofila,
mancha irisada
em redor da pupila,
óleo vertido no asfalto da estrada.

Encosto o rosto às mãos, e embevecido
contemplo a construção de linhas,
e finjo-me esquecido
como se não soubesse que são minhas.

Como se não soubesse
comovo-me e entrego-me no sorriso total,
Construo o meu real
conforme me apetece.

O MAMÃO ( Ana Paula Tavares )

 Frágil vagina semeada

pronta, útil, semanal
Nela se alargam as sedes

no meio
cresce
insondável

o vazio...




 

 


POEMA DA MENINA TONTA ( Manuel Lopes Fonseca )

 A menina tonta passa metade do dia

a namorar quem passa na rua,
que a outra metade fica
pra namorar-se ao espelho.

A menina tonta tem olhos de retrós preto,
cabelos de linha de bordar,
e a boca é um pedaço de qualquer tecido vermelho.

A menina tonta tem vestidos de seda
e sapatos de seda,
é toda fria, fria como a seda:
as olheiras postiças de crepe amarrotado,
as mãos viúvas entre flores emurchecidas,
caídas da janela,
desfolham pétalas de papel

No passeio em frente estão os namorados
com os olhos cansados de esperar
com os braços cansados de acenar
com a boca cansada de pedir

A menina tonta tem coração sem corda
a boca sem desejos
os olhos sem luz
E os namorados cansados de namorar
Eles não sabem que a menina tonta
tem a cabeça cheia de farelos.

POEMA DO CADERNO DE DESENHOS ( Ana Cristina César )

 descuido não (concentração) lembrar da caretice que você não gosta.

reaproveitar o casaquinho de banton.
quando você mal pensa que é novidade, não é.
Existe uma medida entre o descuido e a
premeditação — trata-se do cuidado (floating
attention). Daí escapam maps of England birds, pessoas seguindo numa certa direção,
bichos que vão virando gente, discretamente eróticos, desejando
mancha transparente e diluída de aquarela cor de rosa,
see?
Medida exata entre o acaso e a estrutura.
Aprender fazendo, baby.
começar pelas médias (daí para pequenas, depois para grandes)

VOZ DE SANGUE ( Agostinho Neto )

 Palpitam-me

os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue

Ó negro esfarrapado do Harlem...
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South

Ó negro de África
negros de todo o mundo
eu junto ao vosso canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.

Eu vos acompanho
pelas emaranhadas áfricas
do nosso Rumo

Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos.