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abril 30, 2023

ABSOLVER (Adilia Lopes )

 "Mas Maria guardava todas essas coisas,conferindo-as em seu coração."(Lc 2,19)

Chama-se sexo
a uma parte do corpo
como se todo o corpo
as mãos os pés a cabeça
não fossem também sexo
o pênis a vagina
os testículos as maminhas
são frágeis
vulneráveis
estão expostos
à crueldade
são flores
ou musgos
posso estar nua e ser casta
não tenho nada de freira viciosa
e devassa
com toda a minha atenção
toco-te
dou-te os meus sentidos
os meus sentimentos
sinto muito
ter estado muito contigo
é uma coisa boa
que melhora o mundo
que o embeleza
agradeço ter-te encontrado
e ter feito o que fiz contigo
com a cabeça nas mãos
e os olhos cheios de lágrimas
sonho contigo comigo

IMÓVEL ( Miriam Reyes ) Tradução: Nelson Santander

 abandonado a teu peso de homem imóvel

olhas-me com antiquíssimos ressentimentos.

Ouve-me bem:
sou inocente de teu passado
não sou a tua puta mãe
nem a tua enferma mãe
nem a tua louca mãe
embora seja uma puta louca.
Não mereço receber agressões alheias,
atrasadas e caducas.
Não projetes em mim os fantasmas de tua infância,
tenho forma, cor e dimensões próprias.

Tampouco venhas para mim
chorando como um bebê
quando não o és
este colo que te acolhe também te deseja.

Não exageres,
a mim também me expulsaram do paraíso
antes do tempo
e sem notificação prévia,
a quem é que não?

Vamos, homem,
sai dessa!

NUDEZ ( Ellen Bass ) Tradução: Nelson Santander

 A primeira vez que vi o pênis do meu namorado

pensei que o pau estaria coberto de pelos,

como o monte gramado do meu próprio sexo.
Minha avó arrancou as últimas penas

do frango castrado, de sua pele escorregadia, folículos,
pequenas protuberâncias em forma de crateras. Certa vez, torci

o pescoço de um passarinho que havia caído do ninho,
um fragmento de casca colado em sua penugem. A nudez

do recém-nascido, manchado de sangue e vérnix,
esparramado como um sapo na barriga afundada da mãe,

o rijo e retorcido cordão pulsando. A nudez
do corpo de minha mãe esfriando, o sangue recuando

de seus leitos ungueais, dedos tornando-se marfim. Após a morte,
a mandíbula se abre, expondo a língua nua, ressecada

e espinhosa como o caule de um cacto. Quando a Torá
é levantada da arca, é uma honra desnudar

sua coroa e couraça prateadas, capa e manto de veludo.
Após a leitura do dia, é uma honra trajar

a Palavra nua novamente. Laura raspou a cabeça
para não ter que ver seus cabelos caírem presos

aos dentes do pente, uma poça no travesseiro.
Manet pintou O Piquenique no Bosque1, cerejas

e peras amarelas caindo da cesta.
Os dois homens estão vestidos, completos com gravatas

e paletós, a mulher está nua. Nos anos setenta,
Marabel Morgan aconselhou as esposas

a receberem seus maridos na porta envoltas
em plástico filme. Conheci uma mulher que gostava

de limpar a casa nua. Se alguém tocasse a campainha,
mesmo que fossem Testemunhas de Jeová em camisas brancas

e sapatos pretos com cadarços, ela atendia assim.
Era a casa dela, ela disse. Meu marido era

o terapeuta do marido dela. Quando ele
se suicidou, meu marido desistiu do consultório.

Isso foi há muito tempo, meu ex-marido também está morto.
Quando éramos casados, ele queria que eu dormisse nua.

Expliquei-lhe que meus ombros ficavam frios. Ele então pegou
minha camisola de flanela e a recortou abaixo das axilas.

Nós rimos tanto que você poderia pensar
que ficaríamos juntos. Certa vez, cruzei com uma mulher

caminhando nas colinas de Santa Cruz, nua,
exceto pelos tênis brancos. Quando meus filhos

eram pequenos, eles adoravam ficar nus. Meu filho
se levantava em sua cadeira na mesa de jantar, seu pequeno pênis

posicionado acima do prato. Eu estava em um hotel no Missouri
zapeando os canais na TV. Metade dos programas

era de mulheres exibindo seus seios, metendo-se
à frente das câmeras ou de quatro,

sendo fodidas por trás. A outra metade era de
fundamentalistas protestando contra elas. Adoro

deitar-me ao lado do corpo nu de Janet. Seu calor
é a coisa mais próxima do sol que eu conheço.

Anos atrás, nós rolamos nuas pelas
dunas do Vale da Morte. Os cones

perfeitos de seus seios, polvilhados com grãos de areia.
Quando a filha de Eleanor não conseguiu se recuperar,

seu coração foi arrancado do peito, hospedado
nu no ar, e implantado em um empresário

chileno. Anos mais tarde, quando eles se conheceram
e se abraçaram, ela sentiu o coração da filha

batendo contra seu peito. A nudez das casas
quando os moradores se mudam, sombras quadradas

nos espaços que os quadros ocupavam, moedas empoeiradas,
clipes de papel, carcaças de insetos. Sacramento,

terra vermelho-castanha sem brotos de arroz ou nogueiras,
esperando nua pela próxima safra de shopping centers.

Fome nua. Medo nu. Quando você olha para um rosto
e percebe a necessidade, nua como um fruto despelado. A nua oração

em que você não acredita, mas ora mesmo assim
porque não pode evita-lo, nua, estúpida

em sua esperança. Sua filha está dançando nua em uma gaiola,
as coxas nuas que outrora foram empurradas para fora entre

suas coxas nuas agora envolvem um poste de prata
enquanto os homens seguram suas vontades nuas em suas palmas

nuas para fugir de suas dores nuas. Contudo, você não consegue parar
de pensar nos dedos dos pés nus dela da primeira vez que a

levou para a praia.


 

ODE LOUCA ( Filipa Leal )

 Todos os homens têm o seu rio.

Lamentam-no sentados no interior das casas
de interior e como o poeta que escreve a lápis
apagam a memória com a sua água.
Os rios abandonam os homens que envelhecem
longe da infância, e eles choram
o reflexo absurdo na distância.
Por vezes, enlouquecem os rios, os homens,
os poetas nas palavras repetidas
que buscam uma ode que lhes diga
a textura. Todos procuram o mesmo:
um lugar de água mais limpa
ou um espelho que não lhes negue
a hipótese do reflexo.
O rio sofre mais do que o homem,
o poeta,
porque dele se espera que nos devolva
a imagem de tudo, menos de si próprio.
Todos os rios têm o seu narciso,
mas poucos, muito poucos,
o simples reflexo das suas águas.

A SOLIDÃO ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 A noite abre os seus ângulos de lua

E em todas as paredes te procuro

A noite ergue as suas esquinas azuis
E em todas as esquinas te procuro

A noite abre as suas praças solitárias
E em todas as solidões eu te procuro

Ao longo do rio a noite acende as suas luzes
Roxas verdes azuis.

Eu te procuro.


CANÇÃO DE MATAR ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

Do dia nada sei

O teu amor em mim
Está como o gume
De uma faca nua
Ele me atravessa
E atravessa os dias
Ele me divide

Tudo o que em mim vive
Traz dentro uma faca
O teu amor em mim
Que por dentro me corta

Com uma faca limpa
Me libertarei
Do teu sangue que põe
Na minha alma nódoas

O teu amor em mim
De tudo me separa
No gume de uma faca
O meu viver se corta

Do dia nada sei
E a própria noite azul
Me fecha a sua porta

Do dia nada sei
Com uma faca limpa

Me libertarei. 



ROSTO NU ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 Rosto nu na luz directa.

 Rosto suspenso,
 despido e permeável,
 Osmose lenta.
 Boca entreaberta como se bebesse,
 Cabeça atenta.
 Rosto desfeito,
 Rosto sem recusa onde nada se defende,
 Rosto que se dá na duvida do pedido,
 Rosto que as vozes atravessam.
 Rosto derivando
 lentamente,
 Pressentindo que os laranjais segredam,
 Rosto abandonado e transparente
 Que as negras noites de amor em si recebem
 Longos
 raios de frio correm sobre o mar
 Em silêncio ergueram-se as paisagens
 E eu toco a solidão como uma pedra.
 Rosto perdido
 Que amargos ventos de secura em si sepultam
 E que as ondas do mar puríssimas lamentam.


 

NAS PRAIAS ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome se perca repetido
  Mas espera-me:
 Pois que mais longos que sejam os caminhos
 Eu regresso.


 


 

QUE O TEU GLÁDIO ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 Que o Teu gládio me fira mortalmente.

 Eu sou de alma dispersa e vagabunda,
 Tudo me destrói e cada ser me inunda
 E posso assim rolar eternamente.

AH, FALEMOS DA BRISA (Eugénio de Andrade)

 Eu dizia:

 "Nenhuma brisa é triste"
 e procurava água, lábios,
 um corpo
 onde a solidão fosse impossível.
   Mas quem sabe dessa música
 cativa nos meus dedos?
 E depois, como guardar um beijo.
 mar doirado ou sombra
 desolada?
   Recordava um rio,
 álamos,
 o sabor nupcial da chuva,
 tropeçava em lágrimas e soluços
 e lágrimas, e procurava.
   Como quem se despe
 para amar a madrugada nas areias,
 eu dizia: " Nenhuma brisa é triste,
 triste", e procurava.
   E procurava.

PROCURA A MARAVILHA ( Eugénio de Andrade )

 Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe a barcos e bruma.
No brilho redondo e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.


 

abril 29, 2023

LUXÚRIA ( Roberta Tostes Daniel )

 De quanto eu te olho.

Quando o caminho é feito
de grandeza e cascata.
O cheiro notívago, galhos que somos.
Do estar sem pauta.
Tinta do esmalte, rasgando.
Casas em suas manhãs
suspensas.
Desmedido no pincel dos dedos
o certeiro.

GARIMPO ( Anna Apolinário )

 Que teus lábios busquem sem cessar

em minhas densas e voluptuosas cavernas
o doce luminescente minério
o precioso mel de Vênus nascendo
de um ventre cravejado de beijos.

O MEDO DE QUE ME VISSES NUA ( Carol Ruiz )

 O medo de me que vissem nua

Crua na palavra
Na urdidura do poema
fugiu a galopes
quando as senti na pele

Tantas várias mulheres
Seguindo enlaçadas ao meu sangue
Me lembrando de que não sou uma
Mas todas
Eu e muitas outras
Escorrendo pelos meus cortes

Não sou uma na palavra
Não escrevo só a minha história
Não cravo única a trama dos meus versos

— A mulher herda fantasmas sob os ossos.


POR DELICADEZA ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

Bailarina fui

Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só três passos dei
Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado
Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei
Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado
Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei
Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também eu direi:
«Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida»

O SUMO FRESCO ( Luiza Nilo Nunes )

 Vieram negras as sementes do abandono 

e nos teus ossos iniciaram-se os ofícios. 

 

Tu, discípula da sombra. 

Tu que acendes os teus lábios pelos  

fósforos escuros  

e incendeias a floração da tua língua. 

 

Tu que levas nos cabelos um registo de orfandade 

e sobre a pele um cheiro podre de  

lençóis hospitalares 

como um hálito de flor  

ou um lentíssimo perfume.   

 

Tu, discípula da rosa dos outonos, 

que amanheces e desovas como um saco de embriões 

e vertes litros de mirtilos sobre os pés, 

o sumo fresco dos estábulos da morte 

e que às escuras, como um lírico cordeiro, 

ofereces em autópsia o teu ventre expiatório 

e iluminas com o brilho dos teus dentes 

os sorrisos das caveiras incubadas nos espelhos. 

 

Tu que clamas e ressoas livremente nas cidades  

como um fúnebre tambor 

mas amordaças os espinhos do teu  

sexo de cinzas, 

o teu cálice apagado pela lívida aliança 

e adoeces como um nódulo  

ou uma caixa de silêncio  

pelo homem que exauriu no sono angélico das pombas, 

pelo homem-esqueleto a revestir-se nos pomares, 

pelo homem de pulmões nupciais,  

cheios de algas tenebrosas, 

 

pelo homem enxertado de moscardos e abundâncias, 

o rapaz da deserção e do livor, 

dos favos roxos nas narinas, 

da dulcíssima agonia 

do mel. 


PRÓDIGA ( Luiza Nilo Nunes )

 Falo da mulher que foi cegada pela vinda de um clarão, 

da rapariga que desperta para a lâmpada solar, 

os olhos brancos e feridos como pétalas à luz. 

 

Falo da fêmea que se despe sobre o centro do poema, 

os cascos frescos e molhados sobre as águas do poema, 

a rapariga que mergulha loucamente nos corais. 

 

Uma figueira exuberante prefigura-lhe a nudez 

e o seu espírito revela-se nos figos luminosos,  

nas fruteiras onde ferve a pele áspera dos figos,  

nas canastras perfumadas onde os frutos apodrecem. 

 

Sei que um figo, se trincado pelas lâminas  

da sede, prefigura o sangramento da mulher, 

porque ela sangra docemente como um fruto proibido, 

ela goteja sob a árvore maldita:  

a sua carne é um verão atravessado de coágulos. 

 

Nos lençóis, nos linhos parcos consagrados à pureza, 

posso ler como um oráculo o seu  

registo de menstruo,  

posso ver delinear-se as asas bíblicas da ave, 

posso ver passar as pombas nas linhaças menstruadas, 

 

posso ler nas plumas limpas, arejadas dos lençóis  

a sua líquida  

escritura de sangue. 

 

Que ela sangre e apodreça na doçura de um perfume  

e seja pródiga, isto é:  

que a sua boca seja 

exótica e floral, 

que amadureça como a nota mais profunda 

de uma fúnebre fragância de jasmins 

e que os seus gestos repercutam o desespero de um pássaro. 

 

E o espírito, cercado pela luz, 

amachucado pela luz de uma palavra, 

quebre agora o doloroso coração do silêncio.