Seguidores

29/04/2023

VÍNCULO ( Luiza Nilo Nunes )


"Porque o amor é forte como a morte." 

in Cântico dos Cânticos, 8:6 

 

E quando a luz vier cingir a minha lápide sombria,  

quando a noite libertar o voo cósmico das aves, 

 

quando as ervas engolirem a leveza dos meus ossos  

e o meu peito apodrecer  

sobre a sageza das planícies,  

e eu entrar como um espírito  

nas câmaras cruéis,  

 

direi que sim: 

que conheci a calidez da tua boca,  

que provei o mosto escuro e tenebroso  

dos teus lábios,  

que apartei a escuridão que sela o arco  

dos teus dentes,  

que beijei as delicadas cicatrizes dos teus flancos  

e as colmeias onde é doce  

o mel sinistro do teu sexo, 

 

que pus flores de terror e puro  

êxtase floral  

nas masculinas e secretas reentrâncias do teu corpo,  

e que o teu corpo de rapaz – ungido  

a pombas e perfumes –  

foi cercado por um fôlego puríssimo de rosas, 

 

que tombámos como amantes despenhados  

sobre as rosas, como aves  

instruídas para o sangue dos espinhos.  

 

Deste corpo afeiçoado às ervas  

frescas dos sepulcros,  

deste peito de águas turvas e pulmões esmaecidos,  

destes fúnebres invólucros  

de pele e carnação,  

 

deste arcaboiço de mulher que agora  

brilha sobre o pó  

e é debruado pela cinza dos luzeiros siderais, 

hei de levar unicamente as armações das alianças:  

 

os liames que os teus ossos enlaçaram  

nos meus ossos,  

as manilhas e os anéis do nosso vínculo  

obscuro,  

os fios de prata com que atei a solidão da tua sombra  

à solidão onde lampeja  

e estremece a minha sombra.