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maio 10, 2019

SOBRE ISTO (Vladimir   Maiakovski)
Um dia, quem sabe,

ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.

maio 01, 2019

SONETO DA ESPERA (vinícius de moraes)

Aguardando-te, amor, revejo os dias
Da minha infância já distante, quando
Eu ficava, como hoje, te esperando
Mas sem saber ao certo se virias.

E é bom ficar assim, quieto, lembrando
Ao longo de milhares de poesias
Que te estás sempre e sempre renovando
Para me dar maiores alegrias.

Dentro em pouco entrarás, ardente e loura
Como uma jovem chama precursora
Do fogo a se atear entre nós dois

E da cama, onde em ti me dessedento
Tu te erguerás como o pressentimento
De uma mulher morena a vir depois.

ROSÁRIO (vinícius de moraes)

E eu que era um menino puro 
Não fui perder minha infância 
No mangue daquela carne! 
Dizia que era morena 
Sabendo que era mulata 
Dizia que era donzela 
Nem isso não era ela 
Era uma moça que dava. 
Deixava... mesmo no mar 
Onde se fazia em água 
Onde de um peixe que era 
Em mil se multiplicava 
Onde suas mãos de alga 
Sobre meu corpo boiavam 
Trazendo à tona águas-vivas 
Onde antes não tinha nada. 
Quanto meus olhos não viram 
No céu da areia da praia 
Duas estrelas escuras 
Brilhando entre aquelas duas 
Nebulosas desmanchadas 
E não beberam meus beijos 
Aqueles olhos noturnos 
Luzindo de luz parada 
Na imensa noite da ilha! 
Era minha namorada 
Primeiro nome de amada 
Primeiro chamar de filha... 
Grande filha de uma vaca! 
Como não me seduzia 
Como não me alucinava 
Como deixava, fingindo 
Fingindo que não deixava! 
Aquela noite entre todas 
Que cica os cajus! travavam! 
Como era quieto o sossego 
Cheirando a jasmim-do-cabo! 
Lembro que nem se mexia 
O luar esverdeado 
Lembro que longe, nos Ionges 
Um gramofone tocava 
Lembro dos seus anos vinte 
Junto aos meus quinze deitados 
Sob a luz verde da lua. 
Ergueu a saia de um gesto 
Por sobre a perna dobrada 
Mordendo a carne da mão 
Me olhando sem dizer nada 
Enquanto jazente eu via 
Como uma anêmona na água 
A coisa que se movia 
Ao vento que a farfalhava. 
Toquei-lhe a dura pevide 
Entre o pelo que a guardava 
Beijando-lhe a coxa fria 
Com gosto de cana brava. 
Senti à pressão do dedo 
Desfazer-se desmanchada 
Como um dedal de segredo 
A pequenina castanha 
Gulosa de ser tocada. 
Era uma dança morena 
Era uma dança mulata 
Era o cheiro de amarugem 
Era a lua cor de prata 
Mas foi só naquela noite! 
Passava dando risada 
Carregando os peitos loucos 
Quem sabe para quem, quem sabe? 
Mas como me seduzia 
A negra visão escrava 
Daquele feixe de águas 
Que sabia ela guardava 
No fundo das coxas frias! 
Mas como me desbragava 
Na areia mole e macia! 
A areia me recebia 
E eu baixinho me entregava 
Com medo que Deus ouvisse 
Os gemidos que não dava! 
Os gemidos que não dava... 
Por amor do que ela dava 
Aos outros de mais idade 
Que a carregaram da ilha 
Para as ruas da cidade 
Meu grande sonho da infância 
Angústia da mocidade.

QUANDO ME ERGUI ELA DORMIA, NUA... (vinícius de moraes)

Quando me ergui ela dormia, nua 
E sorria, em seu sono desmaiada 
Tinha a face longínqua e iluminada 
E alto, seu sexo sugava a Lua. 

Toquei-a, ela fremiu, gemeu, na sua 
Doce fala, e bateu a mão alçada 
No ar, e foi deixá-la de guardada 
Sob a nádega fria, forte e crua. 

Tão louca a minha amiga, linda e louca 
Minha amiga, em seu branco devaneio 
De mim, eu de amor pouco e vida pouca. 

Mas que tinha deixado sem receio 
Um segredo de carne em sua boca 
E uma gota de leite no seu seio.

PRESSENTIMENTO (vinícius de moraes)

Deixa dormir na tua porta o sono, poeta apascentado pela Lua 
Seus seios bebem teu sangue para alimentar os anjos 
Ouve as flores, sente como as suas minúsculas tetas de perfume 
Palpitam cheias de vinho para as pequeninas ovelhas do céu 
Fica em calma, enche teus olhos do verde negror da noite 
E quando muito recita um pouco de poesia à toa para as estrelas 
Porque nada tens a fazer, nada! e os passarinhos continuam soltos por aí.

POEMA PARA TODAS AS MULHERES (vinícius de moraes)

No teu branco seio eu choro.
Minhas lágrimas descem pelo teu ventre
E se embebedam do perfume do teu sexo.
Mulher, que máquina és, que só me tens desesperado
Confuso, criança para te conter!
Oh, não feches os teus braços sobre a minha tristeza não!
Ah, não abandones a tua boca à minha inocência, não!
Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas.
Ai! teus cabelos recendem à flor da murta
Melhor seria morrer ou ver-te morta
E nunca, nunca poder te tocar!
Mas, fauno, sinto o vento do mar roçar-me os braços
Anjo, sinto o calor do vento nas espumas
Passarinho, sinto o ninho nos teus pelos...
Correi, correi, ó lágrimas saudosas
Afogai-me, tirai-me deste tempo
Levai-me para o campo das estrelas
Entregai-me depressa à lua cheia
Dai-me o poder vagaroso do soneto, dai-me a iluminação das odes, dai-me o cântico dos cânticos
Que eu não posso mais, ai!
Que esta mulher me devora!
Que eu quero fugir, quero a minha mãezinha quero o colo de Nossa Senhora!

EPITALÂMIO (VINÍCIUS DE MORAES)


Esta manhã a casa madruguei.
Havia elfos alados nos gelados
Raios de sol da sala quando entrei.
Sentada na cadeira de balanço
Resplendente, uma fada balançava-se
Numa poça de luz. Minha chegada
Gigantesca assustou os gnomos mínimos
Que vertiginosamente se escoaram
Pelas frinchas dos rodapés. A estranha
Presença matinal do ser noturno
Desencadeou no cerne da matéria
O entusiasmo dos átomos. Coraram
Os móveis decapês, tremeram os vidros
Estalaram os armários de alegria.
Eram os claros cristais de luz tão frágeis
Que ao tocar um, desfez-se nos meus dedos
Em poeira translúcida, vibrando
Tremulinas e harpejos inefáveis.
Era o inverno, ainda púbere. Bebi
Sofregamente um grande copo de ar
E recitei o meu epitalâmio.
Nomes como uma flor, uma explosão
De flor, vieram da infância envolta em trevas
Penetrados de vozes. Num segundo
Pensei ver o meu próprio nascimento
Mas fugi, tive medo. Não devera
A poesia...
Tão extremo era o transe matutino
Que pareceu-me haver perdido o peso
E esquecido dos meus trinta e quatro anos
Da clássica ruptura do menisco
E das demais responsabilidades
Pus-me a correr à volta do sofá
Atrás de prima Alice, a que morreu
De consumpção e me deixava triste.
Infelizmente acrescentei em quilos
E logo me cansei; mas as asinhas
Nos calcanhares eram bimotores
A querer arrancar. Pé ante pé
Fui esconder-me atrás da geladeira
O corpo em bote, os olhos em alegria
Para esperar a entrada de Maria
A empregada da Ilha, também morta
Mas de doença de homem — que era aquela
Confusão de querer-se e malquerer-se
Aquela multiplicação de seios
Aquele desperdício de saliva
E mãos, transfixiantes, nomes feios
E massas pouco a pouco se encaixando
Em decúbito, até a grande inércia
Cheia de mar (Maria era mulata!).
Depois foi Nina, a plácida menina
Dos pulcros atos sem concupiscência
Que me surgiu. Mandava-me missivas
Cifradas que eu, terrível flibusteiro
Escondia no muro de uma casa
(Esqueci de que casa...) Mas surpresa
Foi quando vi Alba surgir da aurora
Alba, a que me deixou examiná-la
Grande obstetra, com a lente de aumento
Dos textos em latim de meu avô
Alba, a que amava as largatixas secas
Alba, a ridícula, morta de crupe.
Milagre da manhã recuperada!
A infância! Sombra, és tu? Até tu, Sombra...
Sombra, contralto, entre os paralelepípedos
Do coradouro do quintal. Oh, tu
Que me violaste, negra, sobre o linho
Muito obrigado, tenebroso Arcanjo
De ti me lembrarei! Bom dia, Linda
Como estás bela assim descalça, Linda
Vem comigo nadar! O mar é agora
A piscina de Onã, de lodo e alga...
Quantos cajus tu me roubaste, feia
Quanto silêncio em teus carinhos, Linda
Longe, nas águas...Sim! é a minha casa
É a minha casa, sim, a um grito apenas
Da praia! Alguém me chama, é a gaivota
Branca, é Marina! (A doida já chegava
Desabotoando o corpete de menina...)
Marina, como vais, jovem Marina
Deslembrada Marina... Vejo Vândala
A rústica, a operária, a compulsória
Que nos levava aos dez para os baldios
Da fábrica, e como aos bilros, hábil
Aos dez de uma só vez manipulava
Em francas gargalhadas, e dizia
De mim: Ai, que este é o mais levado!
(Pela mulher, sim, Vândala, obrigado...)

 E tu, Santa, casada, que me deste
O Coração, posto que de De Amicis
Tu que calçavas longamente as meias
Pretas que me tiraram o medo à treva
E às aranhas... some, jetatura
Masturbação, desassossego, insônia!
Mas tu, pequena Maja, sê bem-vinda:
Lembra-me tuas tranças; recitavas
Fazias ponto-à-jour, tocavas piano
Pequena Maja... Foi preciso um ano
De namoro fechado, irmão presente
Para me dares, louco, de repente
Tua mão, como um pássaro assustado.
No entanto te esqueci ao ver Altiva
Princesa absurda, cega, surda e muda
Ao meu amor, embora me adorando
De adoração tão pura. Tua cítara
Me ensinou um ódio estúpido à Elegia
De Massenet. Confesso, dispensava a cítara
Ia beber desesperado. Mas
Foi contigo, Suave, que o poeta
Apreendeu o sentido da humildade.
Estavas sempre à mão. Telefonava:
Vamos? Vinhas. Inda virias. Tinhas
Um riso triste. Foi o nada quereres
Que tão pouco te deu, tristonha ave...
Quanta melancolia! No cenário
Púrpura, surges, Pútrida, luética
Deusa amarela, circunscrita imagem...
Obrigado no entanto pelos êxtases
Aparentes; lembro-me que brilhava
Na treva antropofágica teu dente
De ouro, como um fogo em terra firme
Para o homem a nadar-te, extenuado.
Mas que não fuja ainda a enunciada
Visão... Clélia, adeus minha Clélia, adeus!
Vou partir, pobre Clélia, navegar
No verde mar... vou me ausentar de ti!
Vejo chegar alguém que me procura
Alguém à porta, alguma desgraçada
Que se perdeu, a voz no telefone
Que não sei de quem é, a com que moro
E a que morreu... Quem és, responde!
És tu a mesma em todas renovada?

Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu!

CARNE (vinícius de moraes)

Que importa se a distância estende entre nós léguas e léguas
Que importa se existe entre nós muitas montanhas?
O mesmo céu nos cobre
E a mesma terra liga nossos pés.
No céu e na terra é tua carne que palpita
Em tudo eu sinto o teu olhar se desdobrando
Na carícia violenta do teu beijo.
Que importa a distância e que importa a montanha
Se tu és a extensão da carne
Sempre presente?

BALADA DAS DUAS MOCINHAS DE BOTAFOGO (Vinícius de Moraes)


Eram duas menininhas 
Filhas de boa família: 
Uma chamada Marina 
A outra chamada Marília. 
Os dezoito da primeira 
Eram brejeiros e finos 
Os vinte da irmã cabiam 
Numa mulher pequenina. 
Sem terem nada de feias 
Não chegavam a ser bonitas 
Mas eram meninas-moças 
De pele fresca e macia. 
O nome ilustre que tinham 
De um pai desaparecido 
Nelas deixara a evidência 
De tempos mais bem vividos. 
A mãe pertencia à classe 
Das largadas de marido 
Seus oito lustros de vida 
Davam a impressão de mais cinco. 
Sofria muito de asma 
E da desgraça das filhas 
Que, posto boas meninas 
Eram tão desprotegidas 
E por total abandono 
Davam mais do que galinhas. 


Casa de porta e janela 
Era a sua moradia 
E dentro da casa aquela 
Mãe pobre e melancolia. 
Quando à noite as menininhas 
Se aprontavam pra sair 
A loba materna uivava 
Suas torpes profecias. 
De fato deve ser triste 
Ter duas filhas assim 
Que nada tendo a ofertar 
Em troca de uma saída 
Dão tudo o que têm aos homens: 
A mão, o sexo, o ouvido 
E até mesmo, quando instadas 
Outras flores do organismo. 



Foi assim que se espalhou 
A fama das menininhas 
Através do que esse disse 
E do que aquele diria. 
Quando a um grupo de rapazes 
A noite não era madrinha 
E a caça de mulher grátis 
Resultava-lhes maninha 
Um deles qualquer lembrava 
De Marília e de Marina 
E um telefone soava 
De um constante toque cínico 
No útero de uma mãe 
E suas duas filhinhas. 
Oh, vida torva e mesquinha 
A de Marília e Marina 
Vida de porta e janela 
Sem amor e sem comida 
Vida de arroz requentado 
E média com pão dormido 
Vida de sola furada 
E cotovelo puído 
Com seios moços no corpo 
E na mente sonhos idos! 



Marília perdera o seu 
Nos dedos de um caixeirinho 
Que o que dava em coca-cola 
Cobrava em rude carinho. 
Com quatorze apenas feitos 
Marina não era mais virgem 
Abrira os prados do ventre 
A um treinador pervertido. 
Embora as lutas do sexo 
Não deixem marcas visíveis 
Tirante as flores lilases 
Do sadismo e da sevícia 
Às vezes deixam no amplexo 
Uma grande náusea íntima 
E transformam o que é de gosto 
Num desgosto incoercível. 



E era esse bem o caso 
De Marina e de Marília 
Quando sozinhas em casa 
Não tinham com quem sair. 
Ficavam olhando paradas 
As paredes carcomidas 
Mascando bolas de chicles 
Bebendo água de moringa. 
Que abismos de desconsolo 
Ante seus olhos se abriam 
Ao ouvirem a asma materna 
Silvar no quarto vizinho! 
Os monstros da solidão 
Uivavam no seu vazio 
E elas então se abraçavam 
Se beijavam e se mordiam 
Imitando coisas vistas 
Coisas vistas e vividas 
Enchendo as frondes da noite 
De pipilares tardios. 
Ah, se o sêmem de um minuto 
Fecundasse as menininhas 
E nelas crescessem ventres 
Mais do que a tristeza íntima! 
Talvez de novo o mistério 
Morasse em seus olhos findos 
E nos seus lábios inconhos 
Enflorescessem sorrisos. 
Talvez a face dos homens 
Se fizesse, de maligna 
Na doce máscara pensa 
Do seu sonho de meninas! 



Mas tal não fosse o destino 
De Marília e de Marina. 
Um dia, que a noite trouxe 
Coberto de cinzas frias 
Como sempre acontecia 
Quando achavam-se sozinhas 
No velho sofá da sala 
Brincaram-se as menininhas. 
Depois se olharam nos olhos 
Nos seus pobres olhos findos 
Marina apagou a luz 
Deram-se as mãos, foram indo 
Pela rua transversal 
Cheia de negros baldios. 
Às vezes pela calçada 
Brincavam de amarelinha 
Como faziam no tempo 
Da casa dos tempos idos. 
Diante do cemitério 
Já nada mais se diziam. 
Vinha um bonde a nove-pontos... 
Marina puxou Marília 
E diante do semovente 
Crescendo em luzes aflitas 
Num desesperado abraço 
Postaram-se as menininhas. 



Foi só um grito e o ruído 
Da freada sobre os trilhos 
E por toda parte o sangue 
De Marília e de Marina.

abril 30, 2019

HIMENEU (vinícius de moraes)

Na cama, onde a aurora deixa 
Seu mais suave palor 
Dorme ninando uma gueixa 
A dona do meu amor. 


De pijama aberto, flui 
Um seio redondo e escuro 
Que como, lasso, possui 
O segredo de ser puro. 



E de uma colcha, uma coxa 
Morena, na sombra frouxa 
Irrompe, em repouso morno 



Enquanto eu, desperto, a vê-la 
Mesmo sendo o homem dela 
Me morro de dor-de-corno.

BALADA DAS MENINAS DE BICICLETA(Vinícius de moraes)

Meninas de bicicleta 
Que fagueiras pedalais 
Quero ser vosso poeta! 
Ó transitórias estátuas 
Esfuziantes de azul 
Louras com peles mulatas 
Princesas da zona sul: 
As vossas jovens figuras 
Retesadas nos selins 
Me prendem, com serem puras 
Em redondilhas afins. 
Que lindas são vossas quilhas 
Quando as praias abordais! 
E as nervosas panturrilhas 
Na rotação dos pedais: 
Que douradas maravilhas! 
Bicicletai, meninada 
Aos ventos do Arpoador 
Solta a flâmula agitada 
Das cabeleiras em flor 
Uma correndo à gandaia 
Outra com jeito de séria 
Mostrando as pernas sem saia 
Feitas da mesma matéria. 
Permanecei! vós que sois 
O que o mundo não tem mais 
Juventude de maiôs 
Sobre máquinas da paz 
Enxames de namoradas 
Ao sol de Copacabana 
Centauresas transpiradas 
Que o leque do mar abana! 
A vós o canto que inflama 
Os meus trint'anos, meninas 
Velozes massas em chama 
Explodindo em vitaminas. 
Bem haja a vossa saúde 
À humanidade inquieta 
Vós cuja ardente virtude 
Preservais muito amiúde 
Com um selim de bicicleta 
Vós que levais tantas raças 
Nos corpos firmes e crus: 
Meninas, soltai as alças 
Bicicletai seios nus! 
No vosso rastro persiste 
O mesmo eterno poeta 
Um poeta - essa coisa triste 
Escravizada à beleza 
Que em vosso rastro persiste, 
Levando a sua tristeza 
No quadro da bicicleta.

A ANUNCIAÇÃO (Vinícius de moraes)

Montevidéu
Virgem! filha minha 
De onde vens assim 
Tão suja de terra 
Cheirando a jasmim 
A saia com mancha 
De flor carmesim 
E os brincos da orelha 
Fazendo tlintlin? 
Minha mãe querida 
Venho do jardim 
Onde a olhar o céu 
Fui, adormeci. 
Quando despertei 
Cheirava a jasmim 
Que um anjo esfolhava 
Por cima de mim...

SONETO DE MARTA ( Vinícius de Moraes )

Teu rosto, amada minha, é tão perfeito

Tem uma luz tão cálida e divina
Que é lindo vê-lo quando se ilumina
Como se um círio ardesse no teu peito.

E é tão leve teu corpo de menina

Assim de amplos quadris e busto estreito

Que dir-se-ia uma jovem dançarina
De pele branca e fina, e olhar direito.

Deverias chamar-te Claridade

Pelo modo espontâneo, franco e aberto

Com que encheste de cor meu mundo escuro.

E sem olhar nem vida nem idade

Me deste de colher em tempo certo

Os frutos verdes deste amor maduro.