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abril 29, 2017

O TANQUE
(José Saramago)
Secou a fonte, ou mais distante rega, 
Não tem água o tanque abandonado. 
Vida que houve aqui, hoje se nega: 
Só a taça de pedra se reflecte 
Na memória oscilante do passado.

ELOQUÊNCIA
(José Saramago)
Um verso que não diga por palavras,
Ou se palavras tem, que nada exprimam:
Uma linha no ar, um gesto breve
Que, num silêncio fundo, me resuma
A vontade que quer, a mão que escreve.
(Pintura de Vicente Romero)




DeclarAção (Nara Rúbia Ribeiro)
Fica assegurado o direito à utopia.
E que as armas e os brasões da pátria respeitem
o nosso poder-dever de delírio.
Saibam que o nosso sonho
ganhou força em seus mil ocasos
e que hoje a sua voz
tem contornos de infinito.
Que o homem seja medido pela grandeza do que ama
e que sua estatura moral se registre
pelo tempo em que persevera
no estender de sua mão.
Que o sexo seja concebido sem pecado
e que todo homem seja nascido
do coração da Humanidade inteira.
Que tenhamos a decência de amar o humano
em sua grandeza ímpar, tenha ele a cor,
a dor ou nacionalidade que tiver.
E que nós, os loucos, os poetas
os sonhadores imprestáveis do mundo,
escrevamos um amanhã
que ainda pode ser hoje. 

abril 28, 2017

CAVALARIA
(José Saramago)
Cheguei esporas ao cavalo
E os sentimentos exaustos
Deram saltos no regalo
Das gualdrapas e dos faustos

A relva cheirava a palha
Desmanchei rosas vermelhas
Mas pasto foi maravalha
Sabia ao sarro das selhas

Porque o cavalo era eu
O cansaço e as  esporas
Tudo eu e a cor do céu
Mais o gosto das amoras

Relinchos eram os versos
Com jeito de ferradura
Que fazia por dar sorte
Mas tantos foram reversos
Que o ventre de serradura
Deu um estoiro deu a morte

Cai a montada no chão
Cai por terra o cavaleiro
Que era eu (como se viu)
Da escola de equitação
Vim ao saber verdadeiro
Das transparências do rio

Agora dentro do barco
Nos remos brancas grinaldas
Tenho os teus braços em arco
Com um colar de esmeraldas.
SER, FAZER E ACONTECER
(Gonzaguinha)
Que uma mulher pode nunca nada
Isto eu já sei
É o grito da dona moral
Todo dia no ouvido da gente
É que eu estou pela vida na luta
Eu também sei
E meu caminho eu faço
Nem quero saber que me digam dessa lei

Porque já sofri, já chorei, já amei
Vou sofrer, vou chorar e voltar a amar
Porque já dormi, já sonhei e acordei
E vou dormir, vou sonhar, pois eu nunca cansei

É que sinto exatamente
Aquilo que sente qualquer um que respira
Uma perna de calça
Não dá mais direito a ninguém
De transar o que seja viver

E por isso eu prossigo e quero
E grito no ouvido dessa tal de dona moral
Que uma mulher pode nunca é deixar
De ser, fazer e acontecer.
AVASSALADORA (Gonzaguinha) 
Avassaladora 
senta no seu colo
lambe o pescoço
morde a orelha
enfia a língua
por entre seus dentes
tomando toda a sua boca
ela é louca 
muito louca e,
ele adora sua mão
apertando o que deseja
com calor e com carinho
ensinando o caminho 
da loucura
e acabando com 
seu medo de não poder
e o macho se solta
se larga, se acaba na 
mão da rainha 
com todo prazer.
e o macho desmonta
no grito de gozo
na mão da rainha
e desmaia
de tanto prazer.


abril 17, 2017

ATÉ AO SABUGO
 (José Saramago)
Dirão outros, em verso, outras razões,
Quem sabe se mais úteis, mais urgentes.
Deste, cá, não mudou a natureza,
Suspensa entre duas negações.
Agora, inventar arte e maneira
De juntar o acaso e a certeza,
Leve nisso, ou não leve, a vida inteira.
Assim como quem rói as unhas rentes.
(Pintura: Vicente Romero)

ARTE POÉTICA (José  Saramago)
Vem de quê o poema?
De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.
Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.

ALEGRIA  (José  Saramago)
Já ouço gritos ao longe
Já diz a voz do amor
A alegria do corpo 
O esquecimento da dor. 

Já os ventos recolheram 
Já o verão se nos oferece 
Quantos frutos quantas fontes 
Mais o sol que nos aquece. 

Já colho jasmins e nardos 
Já tenho colares de rosas 
E danço no meio da estrada 
As danças prodigiosas. 

Já os sorrisos se dão 
Já se dão as voltas todas 
Ó certeza das certezas
Ó alegria das bodas.


abril 08, 2017

NA ILHA POR VEZES HABITADA
( José  Saramago )
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, 
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. 
Então sabemos tudo do que foi e será. 
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, 
e dizem-se as palavras que a significam. 
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. 
Com doçura. 
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites. 
Podemos então dizer que somos livres, 
com a paz e o sorriso de quem se reconhece 
e viajou à roda do mundo infatigável, 
porque mordeu a alma até aos ossos dela. 
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres 
como a água, a pedra e a raiz. 
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.





DISSERAM  QUE  HAVIA  SOL
(José  Saramago)
Disseram que havia sol 
Que todo o céu descobria 
Que nas ramagens pousavam 
Os cantos das aves loucas.

Disseram que havia risos 
Que as rosas se desdobravam 
Que no silêncio dos campos 
Se davam corpos e bocas.

Mais disseram que era tarde 
Que a tarde já descaía 
Que ao amor não lhe bastavam 
Estas nossas vidas poucas.

E disseram que ao acento 
De tão geral harmonia 
Faltava a simples canção 
Das nossas gargantas roucas.

Ó meu amor estas vozes. 

São os avisos do tempo.

É  TÃO  FUNDO  O  SILÊNCIO
( José  Saramago )
É tão fundo o silêncio entre as estrelas.
Nem o som da palavra se propaga,
Nem o canto das aves milagrosas.
Mas lá, entre as estrelas, onde somos
Um astro recriado, é que se ouve
O íntimo rumor que abre as rosas.
(Pintura de Vicente  Romero)

ENIGMA (José Saramago)
Um novo ser me nasce em cada hora. 
O que fui, já esqueci. O que serei. 
Não guardará do ser que sou agora.
Senão o cumprimento do que sei.

abril 05, 2017

NÃO ME PEÇAM RAZÕES
(José  Saramago)
Não me peçam razões, que não as tenho, 
Ou darei quantas queiram: bem sabemos 
Que razões são palavras, todas nascem 
Da mansa hipocrisia que aprendemos. 

Não me peçam razões por que se entenda 
A força de maré que me enche o peito, 
Este estar mal no mundo e nesta lei: 
Não fiz a lei e o mundo não aceito. 

Não me peçam razões, ou que as desculpe, 
Deste modo de amar e destruir: 
Quando a noite é de mais é que amanhece 
A cor de primavera que há-de vir.
(Pintura: Vicente Romero)

ESPAÇO CURVO E FINITO 
(José Saramago)
Oculta consciência de não ser, 
Ou de ser num estar que me transcende, 
Numa rede de presenças e ausências, 
Numa fuga para o ponto de partida: 
Um perto que é tão longe, um longe aqui. 
Uma ânsia de estar e de temer 
A semente que de ser se surpreende, 
As pedras que repetem as cadências 
Da onda sempre nova e repetida 
Que neste espaço curvo vem de ti.


INTEGRAL (José Saramago)
Por um segundo, apenas, não ser eu:
Ser bicho, pedra, sol ou outro homem,
Deixar de ver o mundo desta altura,
Pesar o mais e o menos doutra vida.

Por um segundo, apenas, outros olhos,
Outra forma de ser e de pensar,
Esquecer quanto conheço, e da memória
Nada ficar, nem mesmo ser perdida.

Por um segundo, apenas, outra sombra,
Outro perfil no muro que separa,
Gritar com outra voz outra amargura,
Trocar por morte a morte prometida.

Por um segundo, apenas, encontrar
Mudado no teu corpo este meu corpo,
Por um segundo, apenas, e não mais:
Por mais te desejar, já conhecida.
(Pintura de Vicente Romero)

DIZ TU POR MIM, SILÊNCIO
(José  Saramago)
Não era hoje um dia de palavras, 
Intenções de poemas ou discursos, 
Nem qualquer dos caminhos era nosso. 
A definir-nos bastava um acto só, 
E já que nas palavras me não salvo, 
Diz tu por mim, silêncio, o que não posso.
(Pintura de Vicente Romero)


INTIMIDADE (José  Saramago)
No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.
(Pintura de Vicente Romero)