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fevereiro 27, 2024

MIJO (um poema urgente) (Angélica Freitas)


1.
uma mulher não deve mijar
deve fazer xixi
2.
uma mulher faz xixi
não mija
mas em banheiros públicos
a mulher acaba que mija
3.
uma mulher faz xixi
porque é mais sexy
mas quando é incontinente
a questão se torna irrelevante
4.
conheço uma mulher
que mijava
mas dizia por aí
que fazia xixi
5.
mijei no balde
foi libertador
mijei no balde
dentro do elevador
mijei com vontade
sim senhor
hoje
sou outra mulher
6.
xixi, mijo, urina: como queira chamar
se tiver nojo e a água acabar
se quiser viver vai ter que tomar
mijo. se quiser pode dizer
xixi ou guaraná

mas continua sendo mijo
7.
nisso tudo eu pensava
a caminho do banheiro
após ter lido uma frase
do marcelo rubens paiva
será que ele mija, o marcelo?
com certeza deve mijar
mirando as estrelas, será?
fazendo desenhos no ar?

(quem se importa?
eu não me importo)
8.
outra questão a se especular
quando acontece dormindo
é xixi ou mijo?
dependerá do fluxo?
da quantidade?
qual o critério?
outra coisa que direi
como aviso ou comentário:
mija-se desperto ou dormindo
peidar só se pode acordado

SEGREDO ( David Mourão Ferreira )

Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega


 


DIZ- ME O TEU NOME ( Maria Rosário Pedreira )

 Diz-me o teu nome – agora, que perdi

quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos – como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro – assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo – um nome sim.

fevereiro 24, 2024

QUERO PEDIR DESCULPA A TODAS AS MULHERES ( Rupi Kaur )

 quero pedir desculpas a todas as mulheres

que descrevi como bonitas
antes de dizer inteligentes ou corajosas
fico triste por ter falado como se
algo tão simples como aquilo que nasceu com você
fosse seu maior orgulho quando seu
espírito já despedaçou montanhas
de agora em diante vou dizer coisas como
você é forte ou você é incrível
não porque eu não te ache bonita
mas porque você é muito mais do que isso

NOTAS DO QUOTIDIANO ( Saru Vidal )

 Impulso de acolher o amor,

como uma concha que acolhe a maré.

Gastar o tempo com afeto;

corpo grudento, quente e molhado.

Sentir a água penetrar o estômago,

transformando-se em formigueiro vulvar.

O gosto salgado na língua. uma lágrima no canto do olho.

Dolerse: permitir-se afetar-se com a paisagem.

onde corpos, teias e suspiros sensíveis tricoteiam na praça.

Como é bom sentir-me vivo/ Como é bom o sono profundo.

Como é bom sentir-me alegre/ Como é bom o choro entranhado.

SANGRAR SAGRADO ( Luiza Leite Ferreira )

 Tem algo de sagrado em sangrar

deixar escorrer o que já não serve
esvaziar para encher de novo

Tem algo de lógico em sangrar
para se refazer é preciso
se desfazer primeiro

Tem algo de incômodo em sangrar
porém, nada mais natural:
sofrer faz parte de crescer

MÚSICA ( Vera Silva )

 Caem as letras, uma a uma.

Cai a nossa roupa, espalha-se pelo chão,
Rebolam os versos nos nossos corpos
Em alegre sintonia.
Sinto-te na minha carne, quente.
Entras devagar, dentro de mim
E sacias-me a fome e o querer.

Transpiras-me,
Inspiras-me!

Realizo-te as fantasias mais loucas
Numa entrega indiscreta,
E quente, ardente.
Tomo-te e imaginas-me tua.
Inventamos caminhos indecentes
Para percorrermos juntos
E chegarmos, loucamente, ao fim

Inspiras-me!
Transpiras-me!
Sintonia
Voluptuosidade
Sou tua
Saberás o que queres?
e Amante sensual

PRESÍDIO ( David Mourão - Ferreira )

 Nem todo o corpo é carne. Não, nem todo.

Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco?
E o ventre, inconscientemente como o lodo?
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor. Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo.
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
Vulto da Primavera em pleno Outono.
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

fevereiro 21, 2024

BOCA DA NOITE (Alice Ruiz)

 boca da noite

na calada em silêncio
grandes lábios
se abrem em sim

O CORPO ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 Corpo serenamente construído

Para uma vida que depois se perde
Em fúria e em desencontro erguidos
Contra a pureza inteira dos teus ombros.

Pudesse eu reter-te no espelho
Ausente e mudo a todo outro convívio
Reter o claro nó dos teus joelhos
Que vão rasgando o vidro dos espelhos.

Pudesse eu reter-te nessas tardes
Que desenhavam a linha dos teus flancos
Rodeados pelo ar agradecido.

Corpo brilhante de nudez intensa
Por sucessivas ondas construído
Em colunas assente como um templo.

NOITE ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 Noite. Noite em nossa roda. Noite aberta.

E encontramos um silêncio imenso,
Um silêncio perfeito que nos esperava desde sempre,
E uma solidão que era a nossa imagem,
E uma profunda esperança,
Como se a noite tremesse
De tocar a aurora.

fevereiro 18, 2024

O SORRISO ( Eugénio de Andrade )

 Creio que foi o sorriso,

o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

fevereiro 16, 2024

FLAGRANTE DELITO NAS TEIAS DO PRAZER ( Graça Pires )

 Há um barco no hálito das mulheres.

As gaivotas seguem-no ao longo das estradas,
desenhando o mar nas curvas dos seus corpos.
Vestidas de branco,
festejam o parto das manhãs
e nada altera a transparência
com que aguardam os improvisos,
que não deixam ao cuidado dos deuses.
Flagrante delito nas teias do prazer.


 

PROCURO A COR DA NOITE NOS TEUS OLHOS (Graça Pires)

 Por caminhos do sul, a noite

adquire a tonalidade do mar.
Pressinto o hálito das manhãs claras
e tenho, no sangue, um caos incendiado,
como se fora terra exposta ao sol do meio-dia.
São horas de reinventar os aromas
que me anunciam um trajecto de espanto.

Procuro a cor da noite nos teu olhos,
como quem lambe a lua, devagar.
Depois, digo barco, digo mastro,
digo quilha e somos ilha propícia a navegar.

UM DESAFIO EXIBIDO NAS ANCAS ( Graça Pires )

Dentro de si mesma, a noite
não tem contornos:
Serve-se das sombras
para repatriar exilados afectos.
Abro as janelas, de par em par
e caminho sobre as horas,
com jogos ilícitos presos à cintura.
Um desafio exibido nas ancas.
O vértice das pernas, a sobrançar um rio,
subitamente cheio.

 cheio.


NA TEIA FRÁGIL DOS DIAS ( Albino Santos )

 Não deixes que a tua voz se cale 

antes de ser eco. 
Não deixes que a magia desvaneça. 
Que nada na vida se interrompa 
antes que aconteça. 
Que nenhuma luz se extinga 
enquanto os olhos a pedirem. 
Que nenhuma carícia se perca 
antes das mãos entardecerem. 
Porque tudo o que acontece 
na teia frágil dos dias 
se esgota num imprevisível instante, 
num golpe de vento 
ou no rasgão fugidio de um poema. 

BEBO A PRÓPRIA SEDE ( Graça Pires )

 Volto às palavras resguardadas no útero dos sonhos. 

Uma caligrafia exasperada quer ofuscar o brilho 
em meus olhos, exaustos de procurar 
a estrela d’alva no infinito do amanhecer. 
Dobro-me sobre as páginas em que me escrevo. 
Como se fora uma serpente, rastejo as letras 
com sílabas átonas para não desfocar a minha voz, 
quase ilícita, quando me refugio na paisagem 
para habitar as múltiplas geografias das sedes eternas. 
Bebo a tragos longos a própria sede e choro a tristeza 
extenuada de qualquer melancolia distante. 


ELAS ( Graça Pires )

 Elas têm olhos de vespa como as antigas deusas

e mordem o freio que lhes sangrou os lábios.
Fazem minuciosamente o inventário dos sonhos
esmagados na lembrança.
As paredes das casas com marcas de fumo
guardaram-lhes os gritos quando queimaram
as cartas de amor e o alecrim para afastarem
os fantasmas do passado parados à beira da insónia.
Agora turva-se-lhes a água no quebranto das horas
que a vigilância dos relógios e dos homens
tornam fatigantes.
Às vezes ficam deitadas horas a fio no chão
de cimento afagando o dorso do gato
que febrilmente se enrosca em suas ancas.

fevereiro 10, 2024

SELF - SERVICE ( Vera Maya )

 Entre o desejo e o medo

de perdas irreparáveis,
a moralista e seu dedo
tornaram-se inseparáveis.

ILUSÃO ( Judith Teixeira )

 Vens todas as madrugadas

prender-te nos meus sonhos,
estátua de Bizâncio
esculpida em neve!
e poisas a tua mâo
mavia e leve
nas minhas pálpebras magoadas

Vens toda nua, recortada em graça
rebrilhante, iluminada!
Vejo-te cegar
como uma alvorada
de sol
E o meu corpo freme,
e a minha alma canta,
como um enamorado rouxinol

Sobre a nudez moça do teu corpo,
dois cisnes erectos
quedam-se cismando em brancas estesias
e na seda roxa
do meu leito,
em rúbidos clarões,
nascem, maceradas,
as orquídeas vermelhas
das minhas sensações

És linda assim; toda nua,
no minuto doce
em que me trazes
a clara oferta do teu corpo
e reclamas firmemente
a minha posse

Quero prender-me à mentira loira
do teu grácil recorte
E os teus beijos perfumados,
nenúfares desfolhados
pela rajada dominante e forte
das minhas crispações,
tombam sobre eu meus nervos
partidos... estilhaçados

...........

Acordo. E os teus braços,
muito ao longe,
desfiam ainda
a cabeleira fulva
do sol
por sobre os oiros adormecidos
da minha alcova

Visão bendita! Repetida e nova!

Loira Salomé
de ritmos esculturais!
Vens mais nua
esta madrugada!
Vem esconder-te na sombra dos meus olhos
e não queiras deixar-
ai nunca. nunca mais!

fevereiro 08, 2024

OS AMANTES ( Maria João Cantinho)

 Poderiam ter deixado tudo para trás de si

e tomar o último comboio da noite,
como anjos de Chagall,
que não conhecem senão a dança do amor.
Teriam, então, deslizado pelas sombras,
como figuras luminosas,
que se desenhavam no hálito da madrugada,
os corpos fundidos nos versos
que escreviam no coração um do outro.
Teriam sido felizes, deitados sobre a terra,
a olhar o céu, onde deslizavam animais feitos de algodão,
teriam esquecido os nomes um do outro,
para reaprender o apelo da água
e do sangue, o apelo da voz universal,
o canto derradeiro que os sonhava.
Era preciso ter esquecido tudo
O lugar onde se nasce,
a casa onde sempre se retorna,
era preciso ter esquecido tudo,
para reaprender esse enigma,
que se escrevia na flor do silêncio.
Poderiam ter esquecido tudo, para trás de si
e tomado o último comboio do tempo.

Margarida Vieira, in SEGREDOS TECIDOS À MÃO

 Espero por ti

como a areia
pela espuma salgada
a flor pela abelha laboriosa
a rua pela janela envidraçada
Espero por ti
como o sol
pelo sorriso do bosque
o amante pela noite escura
a terra pelo orvalho matinal
Espero por ti
como o minguante
pela lua cheia
a pomba pela paz real
a sereia pelo navegante
Espero por ti
como o vento
pelo voo da gaivota
a mãe pelo filho no ventre
a boca pelo beijo ardente.