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agosto 12, 2023

EU TE BAPTIZO EM NOME DO MAR ( Graça Pires )

 Eu te baptizo em nome do mar,

disse minha mãe com barcos na voz.

E as ondas enlearam nas águas o meu nome,

abrindo nas fendas do corpo um impulso

salgado que me brandiu o sangue.

Sei agora que há âncoras afogadas

nos meus olhos: nítido eco de todas as demandas.


INTERVALO AMOROSO ( Affonso Romano de Sant’Anna )

 O que fazer entre um orgasmo e outro,

quando se abre um intervalo
sem teu corpo?

Onde estou, quando não estou
no teu gozo incluído?
Sou todo exílio?

Que imperfeita forma de ser é essa
quando de ti sou apartado?

Que neutra forma toco
quando não toco teus seios, coxas
e não recolho o sopro da vida de tua boca?

O que fazer entre um poema e outro
olhando a cama, a folha fria?

DEFINIÇÃO ( Affonso Romano de Sant’Anna )

 O corpo é onde

é carne:

o corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.

O corpo é onde
é chama:

o corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.

O corpo é onde
é luta:

o corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.

O corpo é onde
é cal:

o corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.

O corpo
é onde
e a vida
é quando.

ELE ( Elisa Lucinda )

Ele
Já começa a beijar o meu pescoço
com sua boca meio gelada meio doce,
já começa a abrir-me seus braços
como se meu namorado fosse,
já começa a beijar a minha mão,
a morder-me devagar os dedos,
já começa a afugentar-me os medos
e dar cetim de pijama aos meus segredos.
Todo ano é assim:
vem ele com seus cajás, suas oferendas, suas quaresmeiras,
vem ele disposto a quebrar meus galhos
e a varrer minhas folhas secas.
Já começa a soprar minha nuca
com sua temperatura de macho,
já começa a acender meu facho
e dar frescor às minhas clareiras.
Já vem ele chegando com sua luz sem fronteiras,
seu discurso sedutor de renovação,
suas palavras coloridas,
e eu estou na sua mão.

Todo ano é assim:
mancomunado com o vento, seu moleque de recados,
esse meu amante sedento alvoroça-me os cabelos,
levanta-me a saia, beija meus pés,
lábios frios e língua quente,
calça minhas meias delicadamente
e muda a seu gosto a moda de minhas gavetas!

É ele agora o dono de meus cadernos, meu verso, minha tela,
meu jogo e minhas varetas.
Parece Deus, posto que está no céu, na terra,
nas inúmeras paisagens,
na nitidez dos dias, no arcabouço da poesia,
dentro e fora dos meus vestidos,
na minha cama, nos meus sentidos.

Todo ano é assim:
já começa a me amar esse atrevido,
meu charmoso cavalheiro, o belo Outono,
meu preferido.

agosto 08, 2023

OUTRAS PALAVRAS ( Marina Colasanti )

 Para dizer certas coisas

são precisas
palavras outras
novas palavras
nunca ditas antes
ou nunca
antes
postas lado a lado.
São precisas
palavras que inventaram
seu percurso
e cantam sobre a língua.
Para dizer certas coisas
são precisas palavras
que amanhecem.

PORTA DO ARMÁRIO ABERTA ( Marina Colasanti )

 Abro a porta do armário

como abro um diário,
a minha vida ali
dependurada
meu frusto cotidiano
sem segredos
intimidade exposta
que os botões não defendem
nem se veda nos bolsos,
espelho mais real que todo espelho
entregando à devassa
as medidas do corpo.

agosto 07, 2023

VEIAS ( Maria do Rosário Pedreira )

 Nas minhas veias corre vento – por

isso, dá-me um vestido inflamado de 
rosas e ensina-me as horas do amor: 

daqui até a morte é um instante.


PEITO ( Maria do Rosário Pedreira )

 Todos querem saber se os meus

lábios ainda estão cheios dos teus 
beijos, se as minhas mãos se abrem 
ainda para as tuas nos passeios de 

verão. Mil olhos me perguntam se 
este corpo que vêem agora assim 
amarrotado continua a receber-te 

na cama, antes do sono, quando o 
pano azul-escuro da noite cai sobre 
o mundo e o vento leva as estrelas 
para longe de casa. Não lhes conto: 

o que há no meu peito é entre nós.


NÁDEGAS ( Maria do Rosário Pedreira )

 Lembro-me e sinto tudo

novamente: passo a mão
pelo veludo das tuas calças
velhas e aperto as nádegas
firmes do passado. Não sou

só eu: as tuas roupas também
têm saudades.