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abril 27, 2024

TERCETOS (Olavo Bilac)

 Noite ainda, quando ela me pedia

Entre dois beijos que me fosse embora,
Eu, com os olhos em lágrimas, dizia:

"Espera ao menos que desponte a aurora!
Tua alcova é cheirosa como um ninho
E olha que escuridão há lá por fora!

Como queres que eu vá, triste e sozinho,
Casando a treva e o frio de meu peito
Ao frio e à treva que há pelo caminho?!

Ouves? é o vento! é um temporal desfeito!
Não me arrojes à chuva e à tempestade!
Não me exiles do vale do teu leito!

Morrerei de aflição e de saudade
Espera! até que o dia resplandeça,
Aquece-me com a tua mocidade!

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar, como há pouco repousava
Espera um pouco! deixa que amanheça!"

— E ela abria-me os braços. E eu ficava. 

II

E, já manhã, quando ela me pedia
Que de seu claro corpo me afastasse,
Eu, com os olhos em lágrimas, dizia:

"Não pode ser! não vês que o dia nasce?
A aurora, em fogo e sangue, as nuvens corta
Que diria de ti quem me encontrasse?

Ah! nem me digas que isso pouco importa!
Que pensariam, vendo-me, apressado,
Tão cedo assim, saindo a tua porta,

Vendo-me exausto, pálido, cansado,
E todo pelo aroma de teu beijo
Escandalosamente perfumado?

O amor, querida, não exclui o pejo.
Espera! até que o sol desapareça,
Beija-me a boca! mata-me o desejo!

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar, como há pouco repousava!
Espera um pouco! deixa que anoiteça!" 

- E ela abria-me os braços. E eu ficava.


QUANDO FOR FAZER AMOR ( Zack Magiezi )


Quando for fazer amor.
Faça nu.
Tire os diplomas.
O Status.
Sucesso profissional.
Suas etiquetas de grife.
Tire a chaves do carro.
Os cartões de crédito.
Tire tudo.
Até só sobrar a deliciosa.
Apimentada humanidade.

abril 20, 2024

AULA DE DESENHO ( Maria Esther Maciel )

 Estou lá onde me invento e me faço:

De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.

AMOR ( Maria Esther Maciel )

 Na véspera de ti

eu era pouca
              e sem
sintaxe
eu era um quase
          uma parte
sem outra
             um hiato
de mim.

No agora de ti
             aconteço
tecida em ponto
                cheio
um texto
com entrelinhas
            e recheio:

um preciso corpo
um bastante sim.

MULHER E PÁSSARO ( Dora Ferreira da Silva )

 Voltamos ao jardim

ao banco lavado pela chuva.
Pedimos o verde ao verde
a flor à flor
sem quebrar-lhe a haste. Bastaria a manhã.
(Nossa presença
desalinha ar e folhas
num frêmito.)

Mas se nada pedimos
como quem dorme seguindo a linha natural
do corpo
respiramos o puro abandono:
um pássaro alveja o azul (sem par)
ultrapassa o muro do possível
e assim damos um ao outro
a súbita presença
do Céu.

RUA DE COMÉRCIO (Vera Lúcia de Oliveira)

 Sou poeta da cidade magra

da cidade que não
caminha
sou dessa planicidade
sou da violência das vidas
poeta da cidade que afunda casas
e pessoas
sou da puta da cidade que só tem
superfície

amanheço todo dia nua e estreita
como uma rua de comércio

O ORIENTE DA CIDADE (Cida Pedrosa)

 entre pombos e putas construí poemas


a cidade era lúcida
a radiola de fichas juntava nossas coxas
os retalhos eram enfeites de salão

entre pombos e putas construí poemas

a cidade era música
cama de loucos e as mulheres livres
para o copo para o corpo para as ruas

entre pombos e putas construí poemas

a cidade era à prova de balas
a ponte era à prova de sonhos
a dor visitava o Capibaribe

entre putas e pombos construí poemas

O CAMINHO DA FACA ( Cida Pedrosa )

 parte em arco

rumo ao corpo amado
flecha a fera, exposta
à chaga

cruza a dor, o sonho
escuta

zunindo a lâmina
flamejante alcança
artérias e vasos
aquedutos pontes

parte em seta
rumo ao corpo amado
serena ira, ao amor
alcança

desdobra a carne
desnuda a veia
instala certeira
a eternidade

pára qual âncora
dentro do corpo amado
ferina flor, ao corpo
planta

ATO ( Mariana Botelho )

 um poema me deixou um sismo na carne

me arqueou o corpo
e traçou em minhas costas itinerários de espuma.

com um gosto de cor
na boca
deixei cair pulsante
um
longo beijo
morno

 

abril 14, 2024

TARDE NO MAR ( Florbela Espanca )

 A tarde é de oiro rútilo: esbraseia

O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar…

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes…

HORAS RUBRAS ( Florbela Espanca )

 Horas profundas, lentas e caladas

Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas…

Oiço olaias em flor às gargalhadas…
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas…

Os meus lábios são brancos como lagos…
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras…

Sou chama e neve e branca e mist’riosa…
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

abril 12, 2024

A PONTE ( Bruno Félix )


não há vencedores
ou perdedores
nesse jogo dos corpos
somos artesãos
com essas ferramentas de carne
construímos juntos
poemas, pontes
poentes.

te penetro a carne
e teus gemidos penetram em mim
nenhuma distância separa o éter
(um abraço de corpos abraça o mundo)
lançamos os pés na terra
no mais profundo
raízes
nossos corpos são água
nossa sede, nossa vida
nossos olhos refletem as cores
matizes

nesse jogo de corpos
ardemos no mesmo fogo
importa saber quem o ateia?
não
à alma não interessa
saber do sangue que corre na veia
do calor da carne, da ereção
à alma interessa o que vibra
a melodia de cada som

com nossos instrumentos de carne
escreveremos canções
a cada toque de pele
encontraremos escalas
regidas por movimentos
sublinhadas por respirações
até que os anjos as ouçam
atravessem essa ponte
e unam-se a nós
no mesmo poema
no mesmo tom
no poente

abril 11, 2024

POESIA ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 Se todo o ser ao vento abandonamos

E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.

Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.

abril 05, 2024

ESTAÇÃO ( Mariana Botelho )

tenho um outono no corpo

de onde as
coisas
caem

vejo doçura nas roupas
espalhadas
pelo
chão

ÁGUA ( Mariana Botelho )

 Água.


fui sentir o cheiro de
terra molhada.

ficamos ali
eu e meu corpo,
cantando a plenitude do mato
depois da chuva.

Água.

me amei.

INTIMIDADE ( Mariana Botelho )

 um pequeno itinerário de passos

uma claustrofobia acariciada
gente que todo dia me bate
à porta e entrega-me os
cílios meus que encontraram
na calçada.

o dedinho de uma linda preta
com quem dividir os cílios caídos
com quem dividir o medo
de não sobreviver e de sofrer
a violência das crianças na escola.

aquela voz grave todas as manhãs
todas as manhãs
aquele cheiro só
aquele cheiro de capim chovido
os olhos negros do meu pai
e uma cidade íntima
soluçando dentro de mim.

NUNCA, NADA, NINGUÉM ( Rosa Berbel )

 Eu me pergunto com quantas dessas pessoas

estaremos novamente ou qual será o nome delas
se terão essa mesma raiva
pelos maus movimentos da vida
ou essa felicidade momentânea
e dourada
que passa pelos parques e pelas mãos
se esse espaço que compartilhamos agora
será outro amanhã se Amanhã
talvez seremos diferentes e nos conheceremos do zero
e não nos lembraremos do momento
em que entramos juntos nestas praças,
da música que tocava naquele saxofone,
daquela criança perdida que chorava no chão
ou a beleza fugaz
dos semáforos
em que todos se beijavam.

MICROCOSMO ( Rosa Berbel )

 Começamos a nos despir lentamente,

dentro de um carro velho.
O carro, que não é nosso,
balança de um lado para o outro,
da frente para trás, com um balanço distante e sustentado
.
Parece que você me toca da mesma forma que
coisas mal emprestadas tendem a me tocar.
Não muito longe, você pode ouvir o simples estrondo
que precede um deslizamento de terra.
Um edifício aguarda a sua queda.
Qualquer mudança imprevista causaria o colapso,
um movimento desajeitado
poderia facilmente nos lançar no ar.
Se a violência rítmica de nossos corpos
fosse interrompida,
se eu, mulher, gritasse,
ou apontasse para você ou caísse nua
no chão sujo,
estaríamos todos perdidos.
Meu grito, mesmo solitário, deixaria
um massacre.
A cena, um equilíbrio repentino e remoto,
nos deixa tensos de ambos os lados
para sempre.
A intimidade sustenta os alicerces
das casas em ruínas que nunca construiremos.

UMA MULHER AO SOL ( Ioana Gruia )

 Não há nada tão retumbante quanto um corpo.

Imagino a história
dessa mulher nua e pensativa
que se parece comigo.

Ela é dona de sua solidão e anseia por
um amor torrencial,
um sentimento de mar revolto
que ao mesmo tempo respeite seus pensamentos,
que lhe permita analisar as sombras.

Essas sombras são às vezes evasivas
e às vezes tão retumbantes quanto um corpo.

As sombras do amor e da vida,
emoldurando a faixa luminosa,
que mal cobre o que um corpo cobre.

Corpo nu ao sol:
lugar de luz rodeado de sombras.

COISAS PARA DEIXAR (Ana Luísa Amaral )

 Procuro te empurrar de cima do poema

para não destruí-lo na emoção de vocês:
olhos semicerrados, nas precauções do tempo
sonhando com ele de longe, tudo de graça, sem você.

Seus olhos, sorriso, boca, olhar estão ausentes dele;
todas as coisas sobre você, mas coisas sobre partir
E nasce o meu alarme: e se você morresse aí,
no meio do chão sem um texto que te falta?

E se você não estiver mais respirando? Se eu não te vejo mais
porque quero te empurrar, letra de emoção?
E meu pânico aumenta: e se você não estivesse lá?
E se você não estivesse onde está o poema?

Respiro eroticamente com você:
primeiro um advérbio, depois um adjetivo,
depois um verso todo emocionado, promessas.
E termino com vocês em cima do poema,
presente indicativo, artigos no escuro.

abril 03, 2024

DESEJOS ( Affonso Romano de Sant’Anna )

 Disto eu gostaria:

ver a queda frutífera dos pinhões sobre o gramado
e não a queda do operário dos andaimes
e o sobe-e-desce de ditadores nos palácios.
Disto eu gostaria:
ouvir minha mulher contar:
-Vi naquela árvore um pica-pau em plena ação,
e não:-Os preços do mercado estão um horror!

Disto eu gostaria:
que a filha me narrasse:
-As formigas neste inverno estão dando tempo `as flores,
e não:-Me assaltaram outra vez no ônibus do colégio.

Disto eu gostaria:
que os jornais trouxessem notícias das migrações
dos pássaros
que me falassem da constelação de Andrômeda
e da muralha de galáxias que, ansiosas, viajam
a 300 km por segundo ao nosso encontro.

Disto eu gostaria:
saber a floração de cada planta,
as mais silvestres sobretudo,
e não a cotação das bolsas
nem as glórias literárias.

Disto eu gostaria:
ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos.

abril 02, 2024

AS PÉTALAS DO TEU CORPO ( Liliana Jardim )

 Desnudo as pétalas do teu corpo

em dedos febris me consumo
do teu olhar teço pássaros de fogo
do teu cabelo bordo cascatas fome

No meu rosto cintila Andrômeda
no meu peito latejos de mariposa
na minha boca a suculenta romã
nas minhas mãos o fulgor da manhã

No torvelinho da tua alma me perco
nas vítreas gotas dos teus poros, gotejo
na aura do meu estonteamento, levito
no insano momento de languidez, feneço

E no silêncio das minhas mãos febris
poeto versos no teu corpo consoante
na embriaguês das eternas vogais,
sussurro o sibilado vocábulo, amo-te


MÃOS ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 Côncavas de ter

Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.

março 31, 2024

ÚTERO EM SANGUE ( Marina Colasanti )

 Ditas impuras como os leprosos

mulheres menstruadas

 ou paridas

tinham vetada a entrada

no Templo de Jerusalém.

 

Esqueciam os sacerdotes

— ou muito se lembravam —

que sem o útero em sangue

das mulheres

não haveria Templo

nem sacerdotes

nem homem algum dos tantos de Israel

com sua usurpada pureza.


CANÇÕES ( António Botto )

 Pedir

amparo a alguém é uma loucura.
Pedir amor,
Também nada resolve – e para quê?

O amor corre – e em seus próprios movimentos
Isola-se, e de tudo parece que descrê;
E quando vem dizer-nos que é verdade,
Vê-se a mentira
Em que ele a rir afirma o que não vê.