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30/12/2023

CAMPO COM MULHER AO FUNDO ( Nuno Júdice )

 Abri as folhas de um canto de flores nómadas,

de veios apodrecidos e pele rugosa, a desfazer-se
nas mãos que procuravam o corpo da deusa do campo,
de braços enterrados na erva selvagem e rosto virado
para o céu. Procurei nesse livro de arbustos a cor
dos seus olhos, e o fogo do sol reflectiu-se neles,
cegando-me para que não continuasse essa leitura
demente. Mas a sua voz entrou-me pelos ouvidos
da alma, e fi-la soletrar cada sílaba do seu nome, para
não o esquecer nas noites amargas dos longos
continentes em que a saudade, num murmúrio
de corolas sacudidas pelo cansaço do branco, se
prolonga até de madrugada.
Fi-la estender os seus braços na terra húmida
de um breve orvalho, e contei os passos que faltavam
para romper o canavial e descobrir, nesse rio de espumas
sensuais, uma deriva de aves perdidas da sua migração. E
pousei-a numa cama de tábuas e de estevas, coberta
por um pano de palavras tecidas pelas mãos do amor,
desenhando os seus lábios com o sulco de asas que
arranquei ao voo de uma sombria libélula. Toquei
nos seus seios o seu casulo; e senti uma respiração suave
como a aragem que atravessou a colina de onde a vi
descer, empurrada pelos braços de um desejo
de cadências obscuras, de mudos suspiros, de
uma floração de murmúrios ao ouvido da noite.
Recortei esse campo do seu horizonte e colei-o
na página da minha memória, para o percorrer na ausência
do seu corpo. Então, luminosa, a imagem ressurge desse
canto de aves e de vento, e visto-a com o perfume
aveludado da primavera fugitiva. Ainda ouço a sua voz,
na cansada mansidão de um leito de manhãs incandescentes.