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novembro 09, 2024

HISTÓRIA DE UM SORRISO ( Rita Gaspar )

 O teu sorriso desperta o meu

e quando os teus olhos o vêem

ele abre-se mais

abre-se todo e espalha-se

pelo meu corpo que é já teu

e que se solta e vibra

na cadência fina do teu olhar

(imperceptível, mas fundo)

Enquanto a temperatura sobe

o teu toque desperta a minha música

como se eu toda fosse

um instrumento de cordas

sobre uma pele hirta e lisa

em corpo de madeira quente e rijo

pronto para receber o teu desejo

num beijo que inunda

uma língua que procura

como se tu todo fosses

um mar de ondas

que me invade e não se detém

(uma fome que não se sacia)

CANTO DE GUEIXA II ( Rita Gaspar )

 Sonhei contigo a minha noite

e em ti o meu amor

Quantas frases serão precisas

tanto amor assim…

tanto desejo

desde quando?

Ontem era Agosto

amanhã é lua cheia

hoje somos levados pela madrugada

Faço amor contigo na areia fria

sou alvorada à espera do calor

da tua manhã

o meu corpo crepúscula enquanto

ainda não me fazes noite

Só tu acordas o meu corpo com o teu canto

CANTO DE GUEIXA I ( Rita Gaspar )

 Os pés e as mãos atados, encantados

sentem já mil carícias ao encontro

do sopro leve da tua voz

A magia dos teus dedos

antecipa o desejo no meu corpo

só ele me liberta

me dá sentido, sentir, prazer

é ele que me mantém presa

suspensa, gueixa adormecida

Sobre mantos de esperas

passam luas e estrelas

verões e primaveras

e os olhos são silêncio

doce fardo, suave terra

Esperar-te é apurar a saudade

o desejo conjugado na ausência

presente-mais-que-próximo

momento-mais-que-perfeito

esse em que tu regressas

e me envolves e me deleitas

PLANETA ERÓTICO ( Rita Gaspar )

 Ai! Eu quero esse prazer

que consigo contigo

quando vimos refugiados

para casa

naquelas tardes loucas

em que trocamos as voltas à cama

e violamos as horas do relógio

desdobrando mil minutos de delírio

Que prazer me dás

quando me clandestinas

e me tiras as roupas e as palavras

embatendo em mim

eu quero agarrar a força

desse movimento

que me rouba a cor da pele e as entranhas

Quero tecer com ele

a casa

a cama, o relógio, as roupas

a pele e as palavras

num novo mundo planeta erótico

super potência

do amor

O JOGO ( Rita Gaspar )

 Sobe nas minhas costas

anda às cavalitas

como pai e filha

morde o meu ombro e ri

mostra-me esses olhos a rir

Ah! como és linda!

Agora na cama deitado

tu sentas-te em cima de mim

as tuas pernas apertam a minha cintura

o quente do teu sexo a moldar-se à minha barriga

fico tonto. mal consigo respirar

mas sabe bem. dá-me paz

Outra vez! salta para cima de mim

agora escolhes tu a posição que quiseres

monta-me!

cavalga este cavalo selvagem

vem brincar

morde a minha orelha

cheira os meus cabelos

agarra-te bem neles para não caíres

ah! gosto de te ver assim

de baixo para cima

ofegante, rosada, macia

palpitante

Agora sou eu!

vou fazer tudo o que tu me fizeste

NADANDO NUS ( Anne Sexton )

 Na vertente sudoeste de Capri

encontrámos uma pequena gruta desconhecida
onde não havia pessoas e
entrámos nela completamente
e deixámos que os corpos perdessem toda
a solidão.

Todos os peixes que tínhamos em nós
tinham fugido por um minuto.
Os peixes a sério não se importaram.
Não lhes perturbámos a vida pessoal.
Vagueámos calmamente sobre eles
e debaixo deles, soltando
bolhas de ar, pequenas e brancas,
balões, subindo, disseminando-se
rumo ao sol junto ao barco
onde o barqueiro italiano dormia
com o chapéu sobre o rosto.

Água tão límpida que podíamos
ler um livro através dela.
Água tão viva que podíamos
flutuar, apoiados no cotovelo.
Deitei-me nela como num divã.
Deitei-me nela tal e qual como
Odalisca Vermelha de Matisse.
A água era a minha flor estranha.
Tem de se imaginar uma mulher
sem uma toga ou um lenço
num divã tão profundo quanto uma tumba.

As paredes daquela gruta
eram de todosostons de azul e
tu disseste, “Olha! Os teus olhos
são da cordomar. Olha! Os teus olhos
são da cordocéu.” E os meus olhos
fecharam-se como se ficassem
subitamente envergonhados.

CELEBRANDO O MEU ÚTERO ( Anne Sexton )

 Tudo em mim é uma ave.

Esvoaço todas as minhas asas.
Elas quiseram cortar-te
mas não o farão.
Disseram que eras infinitamente vazio
mas não és.
Disseram que estavas moribundo
mas enganaram-se.
Cantas como uma colegial.
           Não estás ferido.                      
Doce valor,   celebrando a mulher que sou
e a alma da mulher que sou
e a criatura central e o seu prazer
canto para ti. Atrevo-me a viver.
Olá, espírito. Olá, taça.
Firmada, coberta. Cobertura com conteúdo.
Olá, terra dos campos.
Bem-vindas, raízes.

Cada célula tem uma vida.
Há suficientes para agradar a uma nação.
Estes bens bastam à populaça.
Qualquer pessoa, qualquer comunidade diria,
“É óptimo podermos plantar novamente este ano
E ter perspectivas de uma colheita.
Previu-se míldio mas houve engano.”
Muitas mulheres cantam isto:
Uma está numa fábrica de sapatos, a amaldiçoar a máquina,
outra está no aquário a tratar uma foca,
outra aborrece-se ao volante do Ford,
outra recebe dinheiro na portagem,
outra ata a corda do vitelo no Arizona,
outra percorre a escala de um violoncelo na Rússia,
outra muda de turno num forno egípcio,
outra pinta as paredes do quarto da cor da Lua,
outra morre mas recorda um pequeno-almoço,
outra estende-se no seu tapete na Tailândia,
outra limpa o rabo do filho,
outra olha pela janela de um comboio
no meio do Wyoming e outra
está algures e algumas estão em toda a parte e todas
parecem cantar, embora algumas não saibam cantar uma nota.

Doce valor,
celebrando a mulher que sou
deixa-me andar com um lenço de três metros,
deixa-me atrair os rapazes de dezanove,
deixa-me transportar tigelas para a oferenda
(se é a parte que me toca).
Deixa-me estudar o tecido cardiovascular,
deixa-me examinar a distância angular de meteoros,
deixa-me chupar os caules das flores
(se é a parte que me toca).
Deixa-me desenhar umas imagens tribais
(se é a parte que me toca).
Por esta coisa que o corpo precisa,
deixa-me cantar
pela ceia,
pelos beijos,
pelo sim
correcto.

O BEIJO ( Anne Sexton )

 A minha boca floresce como um golpe.

Fui enganada o ano inteiro, noites de
tédio, nada a não ser cotovelos ásperos
e caixas delicadas de Kleenex, gritando, choramingas, choramingas, sua tola!

Antes de hoje, o meu corpo era inútil.
Agora rompe pelas costuras.
Rasga as velhas roupas de Maria, nó após nó
e vejam – Agora está crivado de raios eléctricos.
Zás – Ressurreição!   Outrora foi um barco, bastante rude

e sem rumo, sem água salgada debaixo dele
e a precisar de pintura. Não passava de
um conjunto de tábuas. Mas tu libertaste-lhe a âncora,
deste-lhe velas.
Foi eleito.

Os meus nervos excitam-se. Ouço-os, são
instrumentos musicais. Onde havia silêncio,
os tambores, as cordas tocam, incuráveis. Tu fizeste
isto.
Obra de génio. Querido, o compositor incendiou-se.

O SEIO ( Anne Sexton )

É esta a chave.
É esta a chave para tudo.
Preciosa.

Sou pior que os filhos do guarda-florestal,
em busca de dinheiro e pão.
Aqui estou eu, estudando perfumes.

Deixa-me deitar na teu tapete,
no teu colchão de palha – no que estiver à mão
porque a criança em mim morre, morre.

Não sou gado para ser comido.
Nem sou uma espécie de rua.
Mas as tuas mãos encontraram-me, arquitecto.

Cântaro de leite! Foi teu há anos
quando eu vivia no vale dos meus ossos,
ossos dormentes no pântano. Pequenos brinquedos.

Um xilofone, com pele, talvez
esticada sobre ele, desajeitada.
Só depois se tornou em algo real.

Mais tarde, comparei o meu tamanho com os de estrelas de cinema.
Não estava à altura. Havia algo entre as minhas espáduas. Mas nunca bastava.

Claro, havia um prado,
mas não havia jovens cantando a verdade.
Nada que indicasse a verdade.
Ignorante com os homens, deitei-me ao lado das minhas irmãs
e, erguendo-me das cinzas, gritei
O meu sexo será trespassado!

Agora sou tua mãe, tua filha, tua coisa nova em folha – um caracol, um ninho.
Vivo onde vivem os teus dedos.

Visto seda – a cobertura para desencobrir –
porque quero que penses nela, na seda.
Mas não gosto da fibra. É muito austera.

Por isso, diz-me o que quiseres, mas persegue-me como um alpinista
porque aqui está o olho, aqui está a jóia,
aqui está a excitação que o mamilo aprende.

Sou desequilibrada, mas não louca, ou fria como a neve.
Tenho a loucura das raparigas,
E uma dádiva, uma dádiva…

Ardo como o dinheiro arde.





novembro 08, 2024

ESTES TEUS OLHOS ( Erimar Lopes)

 Estes teus olhos profundos

Que expressam meiguice inocente
Grandes com quereres fecundos
Nestas maçãs do teu rosto fulgente.

Este teu olhar às vezes de criança
Disperso, distante e entristecido
São também meus olhos na lembrança
De tudo aquilo que temos vivido.

Estes teus olhos já cansados
Juntos aos meus se fizeram cúmplices
Por tantos olhares apaixonados
E os nossos amores mais simples.

Estes teus olhos que me assenhoram
Muito para os meus têm confessado
Que me amam e muito me adoram
Enquanto os meus sempre têm te amado.

LÁGRIMA DE PRETA ( António Gedeão )

 Encontrei uma preta

que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

IMPRESSÃO DIGITAL (António Gedeão)

 Os meus olhos são uns olhos.

E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandescente.

Inútil seguir vizinhos,
que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

novembro 05, 2024

AS MULHERES TÊM FORMAS MAIS CURIOSAS (Andreia C. Faria)

 As mulheres têm formas mais curiosas

Se eu montasse um circo, em vez de elefantes
teria Senhoras com os seus diferentes
peitos coxas e rabos, todo o corpo fingimento, adereço
Senhoras com os seus diferentes
almoços, amantes e diferentes níveis de tonificação da alma, rivais
dos tigres desdenhosos, dos leões emparedados
Em vez de macacos teria
Senhoras de imitação, raparigas de ventre baixo,
a gravidade resoluta avançando-as, expiando
a obliquidade dos ossos de parir, a posição
correta, espiando umas as outras,
preferindo-se na paisagem no espelho
ao modelo enxuto, clássico, favorecido,
dos homens, espiando os ângulos, forçando a cabeça
a voltar-se para o sol para a luz onde
a mulher é como um papagaio ao vento –
várias cores, torções, inflamações diversas

ADOLESCENTE ( Wislawa Szymborska ) Trad.: Regina Przybycien

 Eu — adolescente?

Se de repente ela me aparecesse aqui, agora,
deveria saudá-la como a uma pessoa próxima,
mesmo que me pareça estranha e distante?

Derramar uma lágrima, beijar a testa
somente pelo motivo
de termos a mesma data de nascimento?

Tanta dessemelhança entre nós
que talvez só os ossos sejam os mesmos,
o formato do crânio, as órbitas.

Pois os olhos deles já parecem maiores,
os cílios mais longos, a estatura mais alta
e o corpo compactamente coberto
de pele lisa, sem defeito.

É verdade que nos unem parentes e amigos,
mas no seu mundo quase todos estão vivos
e no meu quase ninguém
desse círculo comum.

Tanto nos diferenciamos,
de coisas tão diversas falamos, pensamos.
Ela sabe pouco —
mas com absoluta convicção.
Eu sei muito mais —
mas sem certezas.

Me mostra os seus versos,
escritos numa letra clara, caprichada,
que eu já não tenho há anos.

Leio esses versos, releio.
Bom, talvez só este,
se der para encurtar
e corrigir aqui e ali.
Para o resto não vejo futuro.

A conversa não engata.
No seu relógio pobre
o tempo ainda é vacilante e barato.
No meu, muito mais caro e preciso.

Na despedida, nada: um sorriso casual
e nenhuma emoção.

Só quando some
e na pressa esquece o cachecol.

Um cachecol de pura lã,
com listras coloridas,
tricotado à mão para ela
pela nossa mãe.

Eu o guardo ainda.

A FORMALÍSTICA (Adélia Prado)

 O poeta cerebral tomou café sem açúcar

e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que já estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.

JANELA ( Adélia Prado )

 Janela, palavra linda.

Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.

SER MOÇA E BELA SER ( Raimundo Correia )

 Ser moça e bela ser, por que é que lhe não basta?

Porque tudo o que tem de fresco e virgem gasta
E destrói? Porque atrás de uma vaga esperança
Fátua, aérea e fugaz, frenética se lança
A voar, a voar?
Também a borboleta,
Mal rompe a ninfa, o estojo abrindo, ávida e inquieta,
As antenas agita, ensaia o voo, adeja;
O finíssimo pó das asas espaneja;
Pouco habituada à luz, a luz logo a embriaga;
Boia do sol na morna e rutilante vaga;
Em grandes doses bebe o azul; tonta, espairece
No éter; voa em redor, vai e vem; sobe e desce;
Torna a subir e torna a descer; e ora gira
Contra as correntes do ar, ora, incauta, se atira
Contra o tojo e os sarçais; nas puas lancinantes
Em pedaços faz logo às asas cintilantes;
Da tênue escama de ouro os resquícios mesquinhos
Presos lhe vão ficando à ponta dos espinhos;
Uma porção de si deixa por onde passa,
E, enquanto há vida ainda, esvoaça, esvoaça,
Como um leve papel solto à mercê do vento;
Pousa aqui, voa além, até vir o momento
Em que de todo, enfim, se rasga e dilacera.
ó borboleta, para! ó mocidade, espera!

novembro 04, 2024

NINFA ( Affonso Romano de Sant'Anna )

 Diz um crítico

que desde o tempo de Alexander Pope
as ninfas partiram
sem deixar seu endereço.
Se assim é
como explicar que junto àquela fonte
por trás daquele ramo, ao meu encontro
vem sorrindo a mulher que amo?


VELHICE ERÓTICA ( Affonso Romano de Sant'Anna )

 Estou vivendo a glória de meu sexo

a dois passos do crepúsculo.
Deus não se escandaliza com isto.
O júbilo maduro da carne
me enternece.
Envelheço, sim. E
(ocultamente)
resplandeço.

ENTREGA ( Affonso Romano de Sant'Anna )

 Abandonar o corpo à pessoa amada

para que faça dele o que quiser.
Não opor qualquer resistência
entregar-se natural, suavemente.
O outro sabe as veredas
como o rio desce encostas
para seu gozo no mar.
Abandonar o corpo ao outro
para que invente, projete
pontes de suspiros,
liberte seus demônios e poemas
e se converta em anjo
num ruflar de penas.
Abandonar o corpo à sorte alheia
fundida à própria sorte,
dissolver-se no corpo alheio
como quem na vida, dissolve a morte.

AMOR BASTANTE ( Paulo Leminski )

 quando eu vi você

tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

ASSIM O AMOR ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 Assim o amor

Espantando meu olhar com teus cabelos
Espantando meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilavam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos

Em vão busquei eterna luz precisa

FUNDO DO MAR ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 No fundo do mar há brancos pavores,

Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

DESEJO ARDENTE ( Deuzania Alves )

Atiça o desejo em mim, morno e adormecido.
Cubra-me com a ternura dos teus lábios quentes e doces...
Causa arrepios em meu corpo febril.
Aconchega-me em seus braços e tatua o seu beijo em minha pele.
Desarruma os meus cabelos, faça a minha respiração ofegante, sussurra em meu ouvido palavras ousadas e atrevidas.
Permita-se queimar, não tenha medo de se entregar a mim, o fogo que há em nós não é para morte, é para a vida.

O amor é fogo, é entrega em brasa viva. 


NESTA HORA ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade
Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida
O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe
A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar
Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
— Sob o ausente olhar silente de atenção —
Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste