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agosto 30, 2024

PECADO ( Nuno Júdice )

 Nas aldeias antigas, as mulheres do campo

esperavam o princípio da tarde para correrem
no meio das searas, em busca de uma clareira
onde se pudessem despir, para que o sol,
descendo à terra, as pudesse possuir. O fogo
que nascia dos seus lábios pegava-se à erva,
e durante um instante toda a seara ardia,
sem fogo nem fumo, apenas com o desejo
que se soltava da sua boca, e ia apagar o sol,
nas tardes em que a noite caía mais cedo.

Espreitei essas mulheres quando voltavam
das searas, e nos seus olhos traziam um cansaço
de amor. Acompanhei-as às suas casas, e vi-as
deitarem-se contra a parede, olhando os seus
rostos no espelho que as velhas seguravam.
Tinham no rosto um princípio de melancolia;
mas diziam-me que a noite resolveria tudo,
quando a sua cabeça se enchesse de sonhos.
Que queres daqui? perguntavam-me. E eu
pedia-lhes que me guardassem a imagem
do espelho, em que a eternidade se dissipa,
como o seu sorriso no rescaldo do prazer.

ATÉ AO FIM ( Nuno Júdice )

 Mas é assim o poema: construído devagar,

palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

agosto 27, 2024

AZUL SOBRE AMARELO, MARAVILHA E ROXO (Adélia Prado)

 Desejo, como quem sente fome ou sede,

um caminho de areia margeado de boninas,
onde só cabem a bicicleta e seu dono.
Desejo, como uma funda saudade
de homem ficado órfão pequenino,
um regaço e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos
para um forte carinho em minha nuca.
Brotam os matinhos depois da chuva,
brotam os desejos do corpo.
Na alma, o querer de um mundo tão pequeno,
como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga.

NO BAILE ( Afonso Celso )

 Ontem ao contemplá-la decotada,

Ao primor do seu colo descoberto,
Senti-me tonto, da vertigem perto,
Fremente o pulso, a vista deslumbrada.

E, como em láctea fonte perfumada,
Sorvi-lhe sonhos mil no seio aberto,
Com a sede de um filho do deserto
Que encontre enfim a linfa suspirada.

Giram em derredor das níveas flores,
Sofregamente, insetos zumbidores.
- Meus desejos então foram assim.

Mas arredei os olhos, de repente,
Pois meu olhar podia, de tão quente,
Crestar-lhe a fina cútis de cetim!

SILÊNCIO AMOROSO ( Affonso Romano de Sant'Anna )

Deixe que eu te ame em silêncio.
Não pergunte, não se explique, deixe
Que nossas línguas se toquem, e as bocas
E a pele
Falem seus líquidos desejos.

Deixe que eu te ame sem palavras
A não ser aquelas que na lembrança ficarão
Pulsando para sempre
Como se o amor e a vida
Fossem um discurso
De impronunciáveis emoções.


PRESÍDIO ( David Mourão - Ferreira )

 Nem todo o corpo é carne. Não, nem todo.

Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco?

E o ventre, inconscientemente como o lodo?
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor. Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!


agosto 23, 2024

PENÉLOPE ( David Mourão Ferreira )

 Mais do que um sonho: comoção!

Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.

É QUANDO ESTÁS DE JOELHOS ( David Mourão Ferreira )

 É quando estás de joelhos

que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pelos
toda brotada de trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos me entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra.

De Casimiro de Brito

 Quando os teus joelhos

encobrem as tuas águas
meu desejo aumenta

Tépidos os seios
que me dás a beber
mas antes mil beijos

Cubro-te de flores
carnais. Que mais te darei?
Tudo o que pedires

Entro e desfaleço
no altar em que teu corpo
dócil se transforma

Tentação de beijos
os seios que adivinho
sob o teu vestido

Descendo elevo-me
ao jardim do teu corpo
tanta flor a colher

Degusto encantado
o mel das tuas carícias
todo o meu te dou

VAI-SE A LASCIVA MÃO ( Vasco Graça Moura )

 vai-se a lasciva mão devagarinho

no biquinho do peito modelando
como nuns versos conhecidos quando
uma mulher a meio do caminho

era de vento e nuvens, sombras, vinho,
e sonoras risadas como um bando.
os dedos lestos vão desenredando
roupa, cabelos, fitas, desalinho.

a noite desce e a nudez define-a
por contrastes de luz e de negrume
ponto por ponto, alínea por alínea.

memória e amor e música e ciúme
transformados nos cachos da glicínia,
macerando no verão sombra e perfume.

TÃO DOCE ( Maria Teresa Horta )

Tão doce quanto secreta
tão secreta
e tão vazia

Tem no peito um leopardo
e alma de malvasia

Tão duvidosa e perene
tão ardente que despia

Do coração a pantera
que no corpo lhe crescia

Tão macia quando era
se era meiga
e sedenta

Veneno de beladona
doce de cereja preta


agosto 20, 2024

O AMOR DOS OUTROS ( Betty Vidigal )

 O amor dos outros

é indiferente.
Só o da gente
é especial,
fosforescente,
brilha no escuro.

O amor dos outros
é tão pequeno,
nem vale a pena
pichar o muro.

Ninguém entende
o amor alheio;
não é bonito
e não é feio.
O amor dos outros
é tão efêmero!
Estão amando?
Fazendo gênero?

O amor dos outros
é muito pouco:
só o da gente,
direito ou torto,
alegre ou triste,
sereno ou louco,
lascivo ou puro,
céu ou inferno
— só o da gente
será eterno.

Olha pro rosto
do amor alheio:
são só dois olhos,
nariz no meio,
cadê a boca?
Olha pra cara
do amor da gente:
que coisa louca!

PITANGAS ( Betty Vidigal )

 Era uma febre, um delírio,

Uma mandinga bem feita,
cama com cheiro de lírio.

Era um delírio, uma febre,
amor que não se endireita,
quebranto que ninguém quebra,
tremedeira de maleita,
uma mulher e um ébrio
de amor que não toma jeito.
E ela, que não se emenda?

Meus dedos fazendo renda
com os pelos do seu peito;
o coração que se escuta
pelo quarteirão inteiro;
pitangas no travesseiro,
cama com cheiro de fruta.

ABSOLUTA ( Cristina Garcia Lopes )

 é essa tempestade

que não vem
que se arma oculta
sobre nós
ano após ano

essa tempestade
que dorme comigo
que mora em meu ventre
ansioso
dia após dia

não quer a tempestade
se precipitar de vez
se desatar
no céu
um laço de ferro
sobre a terra
invertida

é essa tempestade
que não vem


O XADREZ ( Cristina Garcia Lopes )

 o corpo que se dobra

no ar, ágil
e suntuoso

branco e preto:
a pele e o cabelo
sobre o cinza invisível
dos ossos

para a destreza
houve convergência
de todas as partes

se fosse assim dividido:
o olhar doído
a mão indefesa

o corpo que se dobra
frágil
aos jogos do amor

NU ( Adair Carvalhais Júnior )

 a poeira se esgueira

no pôr do sol por trás
da lua
minguante

um poema se perde
nas cintilações do dia

a solidão se
enreda na chuva
fina na transparência
da lágrima

o silêncio vibra nas
fontes do teu corpo sob
as dobras da tua
pele

um poema amanhece
nas cintilações dos teus
olhos

agosto 19, 2024

OS MEUS MELHORES DESEJOS ( Amália Bautista )

Que a vida te pareça suportável.
Que a culpa não afogue a esperança.
Que não te rendas nunca.
Que o caminho que sigas seja sempre escolhido entre dois pelo menos.
Que te interesse a vida tanto como tu a ela.
Que não te apanhe o vício de prolongar as despedidas.
E que o peso da terra seja leve sobre os teus pobres ossos.
Que a tua recordação ponha lágrimas nos olhos de quem nunca te disse que te amava.

NU DE MULHER ( Amália Bautista )

Para ti nunca passei de um bloco
de mármore. Esculpiste nele o meu corpo,
um corpo de mulher branco e formoso,
em que não viste nada a não ser pedra
e o orgulho, isso sim, do teu trabalho.
Nunca imaginaste que eu te amava
e que tremia quando, docemente,
me modelavas os seios e os ombros,
ou alisavas as coxas e o ventre.
Hoje, estou num jardim, onde suporto
os rigores do frio pelo Inverno,
e no Verão aqueço de tal modo
que nem sequer os pardalitos vêm
pousar nas minhas mãos pois estas queimam.
Mas, de tudo isto, o que mais me dói
é baixar a cabeça e ver a placa:
”Nu de mulher”, como há tantas outras.
Nem te lembraste de me dar um nome.


 


NEM VELAS NEM MOLHO BRANCO ( Martha Medeiros )

 nem velas nem molho branco

hoje nosso jantar
acontece por baixo da mesa

desfias minhas pernas de seda
teu beijo promete mais tarde

jogo a toalha de renda no chão
me rendo

agosto 16, 2024

SINUOSIDADES (Raíça Bomfim)

 quando vi sua hesitação, eu já sabia

é que tenho jeito de moça pura
e cara de mulher vadia

por via das dúvidas, você, cauto,
convidou:
que tal um sorvete e alguns livros de poesia?
adorei a ideia
linda tarde a nossa

quando veio a noite, sugeri qual uma
dama:
que tal uma cachaça nas curvas da cama?

pra nossa delícia, baby
meu prazer tem mais vias que suas dúvidas

NARCISA ( Iara Maria Carvalho )

 agora que sou uma

mulher aprendida
no amor

recolho os frêmitos elaborados
frente às águas

e ao meu sono fluvial retorno
como uma sereia desativada
pra peixes e homens.

SEDUZ ( Iara Maria Carvalho )

 feitiça de longe

amaciando palavras de barro:

flores atacadas por saúvas
cajus travados na garganta
silêncio insinuando sonhos.

se me dá uma água de beber
bem no meio do deserto,
o vestido desce ao chão
arrastando nu tecido
(pernas, poemas, estrelas)

escapa das mãos
um primitivo toque cigano
adivinhando o cheiro de vinagres e desejos.

irrigada de águas agridoces,
minha boca amanhece com seu nome dentro.


A LÂMINA ( Déborah de Paula Souza )

 Tonta com o vinho

das tuas palavras
tantra sob a lâmina
das tuas ciladas
morta de dar risadas
brilho como falsa jóia
— e tão cálida —
zonza entre tuas mãos e tuas facas
santa com perfume de dálias
sem sutiã, sem rumo, sem sandálias
criança pequena brincando com navalhas


 


agosto 12, 2024

AO FIO DA VOZ ( Silvia Chueire )

 desfez-se o mundo

no assombro da tua voz afiada
cortando a noite.
e caíram todas as coisas:
meu corpo entregue ao teu,
os gestos que te esperavam,
teus olhos pedintes
e braços a encerrarem o amor,
nossas noites indormidas,
os corpos a rirem-se
debruçados no vinho
e na música
- todas as coisas.

ainda te procuro.
vejo-te nos lugares que tomaste para ti,
toco-lhes e encontro a tua ausência.

minha voz nada diz,
as palavras coladas à mágoa
cristalizam-se nos lábios.

ESTE CORPO ( Silvia Chueire )

 Olha, digo,

é este o corpo que tenho.
Não é um corpo de arestas.

Pudesses saber agora
em que píncaros,
em que precipícios ele se construiu,
saberias também o que tenho de pássaro.
O que de oceano, tenho.

O que de só carne e sangue,
artérias batendo contra as têmporas,
pequenas taquicardias
neste corpo desconsoladamente humano.
Que não recusa a glória de o ser,
nem sua submissão ao tempo.

DIZER ( Silvia Chueire )

 Diz o teu amor a tocar as pétalas

do fogo que nos lambe os olhos,
e nos enche a alegria de significado.

Diz a tua extrema delicadeza
ao segurá-lo nas mãos,
o medo atravessado no teu sangue.

Diz o teu desejo incendiado junto
ao teu afeto no oceano de palavras
que te ocorrem. Diz a língua que te fala.
Diz.

E me espera.
No mesmo lugar de sempre.


 

DO ALTO DO AMOR ( Silvia Chueire )

 Freqüentemente me esqueço que o mundo

tem a idade do olhar dos homens
para as coisas e as mulheres,
como se fossem deuses, ou baú de brinquedos.
Que as mulheres vivem na oscilação lunar
pisando ora em lâminas,
ora na areia da praia,
em pequenas taquicardias,
a oferecerem o seio ao amante,
ou ao pequenino que alimentam
com olhos mansos.

Freqüentemente me esqueço
da aguda mortalidade nossa.
Nossa, de todas as criaturas,
transfiguradas em pó ou pedra
ou numa árvore qualquer,
sem solenidade.
Apenas porque um dia surge
depois de outro.

Freqüentemente me esqueço
e quero o teu corpo
para amá-lo, abrigar-me nele,
por ele me deixar amar
atravessada de prazer.
Acolhida por ti em luz,
alegria, música
- o desejo atendido,
a atender-te.

Porque do alto do amor
pouco me interessa a questão metafísica da morte,
ou da possibilidade de não estarmos aqui
se o tempo do olhar
não corresponde ao tempo físico.

MARÉS ( Silvia Chueire )

 o mar a habitar o corpo

entregue a ti todos os dias
o sonho

o amor entrelaçado às pernas,
entregue ao sonho todos os dias,
o oceano

o sonho a habitar o amor
entregue à vida todos os dias
o corpo

o amor, o corpo,
o sonho, a ir e vir,
o oceano

IMERSA ( Silvia Chueire )

 Há uma palavra imersa em meus sentidos,

um poema que não se pode dizer.

Faz do meu corpo seu país,

deita versos desalinhados

sobre mim.

Depois voa,

seu voo de canção.

UMA PEDRA ( Silvia Chueire )

 Há uma pedra na insônia.

São de pedra as nuvens carregadas e a voz calada.

Um corpo pende no abismo.
Equilibra-se ou não,

como qualquer objeto.

Toda a consciência da pedra,
da luz,

do sangue,

da microscópica importância da existência

se entrechocam.

OLHAR PARA TRÁS ( Silvia Chueire )

 não há nostalgia,

dor,
ou arrependimento.

olhar para trás

traz a satisfação da vida bem vivida.

medo, ousadia, ansiedade, prazer,

perdas, ganhos, riso e lágrimas.

o vinho bem bebido,

a música embalando corpo e alma,

as palavras atadas ao afeto.

olhar para trás traz esta certeza:

viver é preciso.


CORPO ( Silvia Chueire )

 não se pode elidir o corpo

ele é nós. nós somos ele.

pele, artérias, sangue,

órgãos, músculos.

sentidos e sensações.


não se pode fingir que não existe,

ou deixar de pronunciá-lo

em palavras claras

- como se fosse um erro.


é nosso corpo.

e está vivo.