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13/01/2025

O HOMEM SEM CORAÇÃO ( Maria Jorgete Teixeira )

 Um homem desperta. Um homem ergue-se e vê-se reflectido nas paredes de vidro que aquecem o ninho onde se rasgou em parto.

Um homem acorda da gestação encomendada. Um homem resolveu parir-se outra vez.
Toda a gente deveria ter a hipótese de se gerar de novo, como uma serpente que larga os véus e se reinventa no tempo, roçando o ventre pelo vértice das pedras.
Assim, o homem abriu os olhos ensanguentados e olhou o mundo pela segunda vez. Olhou-o como Caeiro quando inventou o girassol na inocência do olhar. Olhou-o como fita de filme em branco, como virgem à espera do primeiro sémen.
Tinha varrido da memória a infância povoada de corvos e cantos escuros, de lendas tenebrosas vestidas de anjos. Aventada a adolescência da barba por crescer, da inquietação, da masturbação, da rejeição, do medo.
Hibernou no próprio corpo, lua após lua, numa caverna onde não entraram as asas dos arcanjos, nem a vontade dos cometas. Reinventou-se como crisálida, músculos duros e vivos e sangue impoluto, correndo nas artérias desimpedidas de paixões.
Nasceu já crescido e formado com tudo o que era preciso para ser feliz. “Clean” e transparente, sem coração de gente.
No quarto branco e seco onde renasce, há pessoas de largos sorrisos de gato Cheshire que tentam abraçá-lo. Vestidas de areáceas como se vivessem de chuva. Gesticulam, dançam, quais criaturas etéreas, pulam, tocam-se com as mãos e com as bocas. São imperceptíveis as palavras para o recém-nascido. Incompreensíveis na derme, epiderme, tecido mole, ossos, onde se instalaram rouxinóis mudos às emoções.
Chegam até ele e esfregam-se. Abrem os dedos em leque e investigam-lhe a carne. Enlaçam-se os odores, apertam-se.
Desapartam-se à sua estranheza. Não sabe o que fazer. Quer apenas viver o sol e acolher a noite, a vida como figura desenhada num quadro intemporal, depurada e plana.
O toque das pessoas acende-lhe interrogações cujas respostas não inscreveu no seu ADN. Turva-lhe o olhar, que queria límpido e sereno. Indolor.
De súbito nasce a constatação do silêncio, da nudez das veias descoloridas. Da incompletude. A nítida premência das quedas que dobrem a arrogância dos ossos, o manto de dor que justifique a dança dos corpos. E a compaixão.
Dá conta de que os braços lhe são inúteis.