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26/06/2017

O AMOR BATE NA PORTA (Carlos Drummond de Andrade)


Cantiga do amor sem eira
nem beira, 
vira o mundo de cabeça 
para baixo, 
suspende a saia das mulheres, 
tira os óculos dos homens, 
o amor, seja como for, 
é o amor.
Meu bem, não chores, 
hoje tem filme de Carlitos!
O amor bate na porta 
o amor bate na aorta, 
fui abrir e me constipei. 
Cardíaco e melancólico, 
o amor ronca na horta 
entre pés de laranjeira 
entre uvas meio verdes 
e desejos já maduros. 
Entre uvas meio verdes, 
meu amor, não te atormentes. 
Certos ácidos adoçam 
a boca murcha dos velhos 
e quando os dentes não mordem 
e quando os braços não prendem 
o amor faz uma cócega 
o amor desenha uma curva 
propõe uma geometria. 
Amor é bicho instruído. 
Olha: o amor pulou o muro 
o amor subiu na árvore 
em tempo de se estrepar. 
Pronto, o amor se estrepou. 
Daqui estou vendo o sangue 
que escorre do corpo andrógino. 
Essa ferida, meu bem, 
às vezes não sara nunca 
às vezes sara amanhã. 
Daqui estou vendo o amor 
irritado, desapontado, 
mas também vejo outras coisas: 
vejo corpos, vejo almas 
vejo beijos que se beijam 
ouço mãos que se conversam 
e que viajam sem mapa. 
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender.