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28/02/2025

O SOM DESSE ADEUS ( Carla Pais )

 A tua boca ainda ressoa no eco do quarto (são

palavras que ficaram bordadas na pele, perdidas
na bainha dos lençóis que as noites brancas
enxovalharam) como restos de um beijo que perduram nos retratos.
 
Ficou o teu perfume quando abro o livro de poemas que
deixaste por ler, o mesmo que largaste ao lado do candeeiro
que de tão cansado já não vive. Não há luz que resista ao
desencanto de uma cama, ao suor lavado e à voz morta de um
 
corpo que emerge do vazio e se ilustra no frio das cinzas.
Não fechaste a porta antes de sair e por momentos achei
que as palavras largadas ao acaso regressariam contigo.
Mas não, escusaste-me ao som desse adeus.

OS MEUS OLHOS ( Carla Pais )

 Guarda, se possível, a cor das paredes do quarto, 

as flores desbotadas do tapete, 
a lâmpada fundida junto ao teu lugar na cama, 
o pó mergulhado na textura das cortinas, 
a janela aberta em dias de vento, 
o cheiro a alfazema do roupeiro,
os álbuns dentro das gavetas como memórias que 
o teu corpo desejou no meu, só não guardes, por favor, 
o som daquela porta a bater nas tuas costas, 
pois esse, foi o som que guardaram os meus olhos.

 

ERAM DE MARFIM ( Célia Moura )

 Eram de marfim

as asas das andorinhas
onde aprendi a sussurrar
teu nome,
tal como de cobre
teus imensos cabelos
onde ainda hoje habitam meus dedos
mulher amada,
musa por minhas mãos
adorada!
Tuas lágrimas
sei-lhes o sabor
tal como sei o odor
dos teus seios de abandono
onde deixei repousar a vida.
Do teu ventre guardo o êxtase
e a loucura onde sempre
me perdi,
pássaro azul rodopiando infinito,
contemplação absoluta por ti,
em ti.
Absolvição plena
nossos corpos perdidos um no outro
onde já não jazem rosas,
nem tulipas negras ou frescas açucenas,
onde só existo eu e sementes nossas.
Até já meu amor!

27/02/2025

COLAPSO ( Célia Moura )

 Porque esse teu desdém foi bem maior que todos os insultos

volto a fazer piruetas no meu jardim,
bebo limonadas aconchegadas de ausência
para retornar à miúda e ao bibe azul que menosprezas
em toda as enseadas,
alegria.
Sabes, foi ali, onde tantas vezes nos demos
que o mar colapsou
e porque nada nos suportaria a poesia,
toma nota das palavras esculpidas na imensa embriaguez
de já não reconhecer meu sangue derramado num beco qualquer
Toma nota de todas as palavras repetidas
lambendo mel,
sufocadas de nada
que me fazem beijar a fé e toda a dor
de um filho tão desejado
mas jamais parido.
Toma nota deste meu cansaço,
concede-me liberdade.

26/02/2025

EU ME VIRO ( Célia Moura )

 Eu me viro

Perante o veneno da serpente
E os afectos alcatroados
Que reviram no âmago da gente.
Abençoo a luz para não amaldiçoar as trevas.
Me lavo no fogo
Ao vento em preces
Para que as cinzas prossigam até ao mar.
Não, a peçonha dos rastejantes
Não é maior que o voo das pombas
Que ainda repousam no parapeito da esperança…
É nelas que lanço o olhar que me restou
De onde espreito a vida
É onde faço e desfaço os laços
Recolhendo na colheita arremessada à eira
Todas as ressacas, todos os pedaços.

24/02/2025

O CORPO OS CORPOS ( David Mourão - Ferreira )

 O Corpo Os Corpos O teu corpo O meu corpo E em vez dos corpos

que somados seriam nossos corpos
implantam-se no espaço novos corpos
ora mais ora menos que dois corpos
Que escorpião de súbito estes corpos
quando um espelho reflecte os nossos corpos
e num só corpo feitos os dois corpos
ao mesmo tempo somos quatro corpos
Não indagues agora se o meu corpo
se contenta só corpo no teu corpo
ou se busca atingir todos os corpos
que no fundo residem num só corpo
Mas indaga sem pausa além do corpo
o finito infinito destes corpos

DÁ A SURPRESA DE SER ( Fernando Pessoa )

 Dá a surpresa de ser. 

É alta, de um louro escuro. 
Faz bem só pensar em ver 
Seu corpo meio maduro. 

Seus seios altos parecem 
(Se ela tivesse deitada) 
Dois montinhos que amanhecem 
Sem Ter que haver madrugada. 

E a mão do seu braço branco 
Assenta em palmo espalhado 
Sobre a saliência do flanco 
Do seu relevo tapado. 

Apetece como um barco. 
Tem qualquer coisa de gomo. 
Meu Deus, quando é que eu embarco? 
Ó fome, quando é que eu como ? 

23/02/2025

ININTITULADO ( Marcelo Sahea )

minha língua molúsculo
entra em becos vadios
cava cavernas no escuro
vaza dos vaus sombrios

tua língua molúsculo
fonte de eflúvios efêmeros
nédio nácar que osculo
super gema do gênero

nossas línguas molúsculas
musculares púrpuras
lânguidas contíguas

línguas de fogo vivas
lesmas de libar salivas
nuas e ambíguas


CONTRALUZ

Olho o teu corpo em contraluz

colina sagrada

que meus lábios profanaram

em beijos demorados


Olho a tua silhueta nua

poema escultórico insinuante

que meus dedos moldaram

em toques longos subtis


Olho-te

lânguido anjo arquejante

E sei-te a cavalgar estrelas


22/02/2025

Célia Moura, in "Terra de Lavra"

 Cresceu na contracapa da vida,

e contra a ordem natural do mundo
se inaugurou.
Escreveu coisa alguma
no jardim do firmamento
e na face de uma lua imensa e cheia
se fez de novo menina.
Então, repleta de êxtase
rasgou o passado de lés a lés,
em suas mãos renasceu mulher
e se exilou.
De seu ventre resplandeceram
tulipas imaculamente brancas
de saudade,
cálices de fino cristal
embebedando ninfas.
Viveu na contracapa
de todos os poemas
fez-se silêncio e meretriz,
invocação naufragada
da paixão que concebera.
Devorou gritos estridentes de hienas
e se embriagou de Amor
vomitando o sangue de antigas preces
quando toda a miséria em farpas
a trespassou.
Partiu na contramão da vida
mas voou plenitude
e foi a mais pura poesia.

19/02/2025

SÊ ESSÊNCIA! ( Célia Moura )

 Sê Essência!

Isso,
deixa-me sentir-te essência no meu ventre,
quente
semente
teu porto de abrigo em noites de vontade!
Vem,
como quem somente anseia o momento.
Para quê desejarmos a fogueira intensa
se é exaustão alimentá-la?
Não desejemos mais que lume do momento,
a poesia girando entre os dedos
brilhando como o cristal que trago no umbigo!
Eu e tu somos o tempo.
Enrosca-te comigo junto ao pontal das rosas
fazendo amor no chão de pedra entre as papoilas
até depois da morte!
Que meus mamilos te saciem
e tuas mãos invadam estes cabelos negros de índia
selvaticamente para ti desmanchados...
lamberem-te a pele até limpares memórias.
Sê essência, sê minha casa, sê meu cravo vermelho a despontar no solo onde já parti !

17/02/2025

PELE QUE HABITO ( Lubi Prates )

 minha pele é meu quarto.

minha pele é todos os cômodos
onde me alimento onde deito finjo
  o mínimo conforto.

minha pele é minha casa
com as paredes descobertas
  uma falta de cuidado
: necessita sempre mais
para ser casa.

minha pele não é um estado
desgovernado.

minha pele é um país
embora distante demais   para os meus braços
embora eu sequer caminhe sobre seu território
embora eu não domine sua linguagem.

minha pele não é casca
é um mapa: onde África ocupa
todos   os   espaços:
cabeça útero pés

onde os mares são feitos de
minhas lágrimas.

minha pele é um mundo
que não é só meu.


 

NASCENTE ( Mariana Botelho )

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ABSTRATO ( Mariana Botelho )

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16/02/2025

GRANDES SÃO OS DESERTOS... ( Álvaro de Campos )

 Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 

 Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
 Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
 Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
 Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
 Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 

 Grandes são os desertos, minha alma! 
 Grandes são os desertos. 

 Não tirei bilhete para a vida, 
 Errei a porta do sentimento, 
 Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
 Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
 Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
 Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
 Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
 Senão saber isto: 
 Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
 Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 

 Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
 Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
 Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
 Para adiar todas as viagens. 
 Para adiar o universo inteiro. 

 Volta amanhã, realidade! 
 Basta por hoje, gentes! 
 Adia-te, presente absoluto! 
 Mais vale não ser que ser assim. 

 Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
 E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 

 Mas tenho que arrumar mala, 
 Tenho por força que arrumar a mala, 
 A mala. 

 Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
 Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
 Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
 A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 

 Tenho que arrumar a mala de ser. 
 Tenho que existir a arrumar malas. 
 A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
 Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
 Sei só que tenho que arrumar a mala, 
 E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
 E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 

 Ergo-me de repente todos os Césares.   
 Vou definitivamente arrumar a mala.   
 Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;  
 Hei de vê-la levar de aqui, 
 Hei de existir independentemente dela. 

 Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
 Salvo erro, naturalmente. 
 Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 

 Mais vale arrumar a mala. 
 Fim.

15/02/2025

O PERVERTIDO ( Amalia Bautista )

 Durante a noite, ou à hora da sesta,

quando estávamos os dois juntos, via-me 
obrigada a contar umas histórias 
cínicas e mórbidas, sem qualquer 
decência, e sendo eu a protagonista.
Nunca pensei que acreditasse nelas,
pois ele mesmo pedia outro relato,
outra aventura sádica, excitante,
descarada, em que eu fosse sedutora
e seduzida por diferentes homens.
Pensei que era feliz com as mentiras 
que para ele engendrei com tanto esmero.
Mas começou a crer que as minhas palavras
eram memórias, e não fantasias,
e abandonou-me, com a desculpa 
de que o diabo estava entre as minhas pernas 
e ele não tinha nada de exorcista.

FRESTA ( Lúcia Helena Galvão )

 Querida fresta que abri entre dois mundos,

de pouca largura,
discreta, modesta,
mas fresta

Amo olhar através de ti
e vislumbrar outras perspectivas
E só confio quando vejo em ti
e certifico que ainda estou viva.

Seja lá o que for que ainda tenha
ou que perdi,
ninguém me tira o alcance, o poder
de ver de novo através de ti.

Só mesmo em ti é que a dor se ilumina
e até me ensina e me esclarece
Só com tua luz, a cicatriz não entristece,
e é tão divina

Só mesmo em ti, tudo que sou, tudo o que fiz
revela um porte tão mais digno, grandioso,
e o meu sonho, ainda que gere pouca obra,
para a visão da minha alma, alcança e sobra.

Talvez não seja mais que isso o que fica,
quando chegar o próximo ou distante fim:
A fresta que abri para que a alma veja,
que mostra e areja algo de Deus que vejo em mim.

NOMES DA NOITE ( Lília Tavares )

 Algures na epiderme moram

pequeníssimos grãos
que guardam instantes.
São poros onde ficaram
ocultos os dias em que deslumbrados
tropeçámos na ternura
e fomos jangada, marés e areias.
Num anoitecer inesperado,
a pele salgada de uma concha
pode vir despertar a limpidez velada
desses momentos redondos, brancos
e lunares. Gratos aos búzios,
às grutas percorridas, o cansaço
há-de conduzir-nos a um mar de mel.

FRUTO PROIBIDO ( Rozeli Mesquita )

 Ah essa sua língua indecente

Que explora meu sexo ardente.
Mistura nossos desejos
E me consome incansavelmente.
Essa boca que me toca ,
De maneira especial .
Quente e rápida sente
O gozo deste manancial.
Tens minha boca de forma única
Tens teu falo na minha boca
Tua boca tocando a minha
Deixando-me totalmente louca.
Essa tua mão perversa ,
Mão mais que vadia
Que percorre meu corpo
Com desejo, com ousadia .
Tenho-te com fascinação
E sem receios te devoro
Tenho-te por muitos momentos
Tu és meu fruto proibido

MINHA ( Rozeli Mesquita )

 A Fêmea que nela mora

insinua, oferece e recata,
maldiz, conspira e maltrata
a fêmea que nela mora.

A Deusa que nela mora
manda, desmanda, domina,
julga, condena, fulmina
a deusa que nela mora.

A Menina que nela vive
ri, ruboriza, arranha,
interpreta, encanta, acanha,
a menina que nela vive.

A Mestra que nela existe
acolhe, ensina, repreende,
guia, ampara, compreende,
a mestra que nela existe.

A Amante dentro dela
oferece, dá, entrega,
escancara, engole, esfrega,
a amante dentro dela

A Mulher que ela é
é muito mais do que isso:
loucura, tesão, ardor,
beleza, atracção, feitiço
A Mulher que ela é
É, para mim, toda viço.
É dona do meu amor.

TARDE LONGA ( Lídia Jorge )

 Se eu for à casa do amor

Hei-de encontrar-te sentado
À espera que eu me dispa
Conforme foi combinado

E se a tarde for inteira
Nessa pátria a que pertenço
Ficaremos abraçados
Estendidos como num lenço

Ah, quem me dera que os céus
Fossem mais largos, mais fundos,
Despidos somos de deus,
Vestidos somos do mundo

Mas de nós mesmos seremos
Se a tarde for tão comprida
Que o mesmo lenço se estenda
Ao longo de toda a vida


GAIA ( Bruna Lombardi )

Você sabe como eu sou desocupada

que me encerro neste quarto e me permito
todas as divagações, as fantasias
obsessões, perseguições, todos os dias
você sabe que eu me viro de inventos
que eu me reparto e dou crias
que eu mal me resolvo e me aquento
carrego pedras no bolso
e enfrento ventanias.

Você sabe como eu sou desorientada
raciocino pelo instinto e cometo
fugas de túnel de ladra de galeria
uso malhas e madres manhas e lanhas
e percorro superfícies
em que você escorregaria

mas você sabe como eu sou de subsolos
de subterfúgios, de subversos subliminares
como eu sou de submundos
subterrâneos, de sub-reptícias folias
meio de circo, meio de farsa
ervas, panfletos, fluidos, presságios
quebrantos, jeitos, giras, reviras
de sensações e cismas, filosofias

de como eu sou de estradas, andanças, pressentimentos
atmosférica e vadia
gato da noite, de crises, guitarras
ouros e danças e circunstâncias
de vinho azedo e companhia.

Que eu sou de toda as misturas
todas as formas e sintonias
e enfrento esse aperto, essas normas
forças, pressões, imposições, o poderio
os intervalos, o silêncio da maioria.

Você sabe de toda minha luta
mesmo quando a intenção silencia
que eu não cedo, não desisto
a todo custo, a toda faca, a todo risco
eu sobrevivo de paixão e de anarquia.

Você sabe bem da minha fraude
Você conhece as minhas alquimias.