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15/03/2017

UM  ADEUS  PORTUGUÊS

( Alexandre O'Neill )
Nos teus olhos altamente perigosos 
vigora ainda o mais rigoroso amor 
a luz de ombros puros e a sombra 
de uma angústia já purificada 

Não tu não podias ficar presa comigo 
à roda em que apodreço 
apodrecemos 
a esta pata ensanguentada que vacila 
quase medita 
e avança mugindo pelo túnel 
de uma velha dor 

Não podias ficar nesta cadeira 
onde passo o dia burocrático 
o dia-a-dia da miséria 
que sobe aos olhos vem às mãos 
aos sorrisos 
ao amor mal soletrado 
à estupidez ao desespero sem boca 
ao medo perfilado 
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca 
do modo funcionário de viver 

Não podias ficar nesta cama comigo 
em trânsito mortal até ao dia sórdido 
canino 
policial 
até ao dia que não vem da promessa 
puríssima da madrugada 
mas da miséria de uma noite gerada 
por um dia igual 

Não podias ficar presa comigo 
à pequena dor que cada um de nós 
traz docemente pela mão 
a esta dor portuguesa 
tão mansa quase vegetal 

Não tu não mereces esta cidade não mereces 
esta roda de náusea em que giramos 
até à idiotia 
esta pequena morte 
e o seu minucioso e porco ritual 
esta nossa razão absurda de ser 

Não tu és da cidade aventureira 
da cidade onde o amor encontra as suas ruas 
e o cemitério ardente 
da sua morte 
tu és da cidade onde vives por um fio 
de puro acaso 
onde morres ou vives não de asfixia 
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro 
sem a moeda falsa do bem e do mal 

Nesta curva tão terna e lancinante 
que vai ser que já é o teu desaparecimento 
digo-te adeus 
e como um adolescente 
tropeço de ternura 
por ti.