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12/09/2017

RUA DE CAMÕES (Inês Lourenço)


A minha infância 
cheira a soalho esfregado a piaçaba 
aos chocolates do meu pai aos Domingos 
à camisa de noite de flanela 
da minha mãe. 

Ao fogão a carvão 
à máquina a petróleo 
ao zinco da bacia de banho. 

Soa a janelas de guilhotina 
a desvendar meia rua 
surgia sempre o telhado 
sustentáculo da mansarda 
obstáculo da perspectiva. 

Nele a chuva acontecia 
aspergindo ocres mais vivos 
empapando ervas esquecidas 
cantando com as telhas liquidamente 
percutindo folhetas e caleiras 
criando manchas tão incoerentes nas paredes 
de onde podia emergir qualquer objecto. 

E havia a Dona Laura 
senhora distinta 
e sua criada Rosa 
que ao nosso menor salto 
lesta vinha avisar 
que estavam lá em baixo.

as pratas a abanar no guarda-louça 
O caruncho repicava nas frinchas 
alongava as pernas 
a casa envelhecia. 

Na rua das traseiras havia um catavento 
veloz nas turbulências de inverno 
e eu rejeitava da boneca 
a imutável expressão. 

A minha mãe fazia-me as tranças 
antes de ir para a escola 
e dizia-me muitas vezes. 

Não olhes para os rapazes 
que é feio.