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29/09/2024

POST IT ( Lena Maltez )

 sentires...

acordas junto à sombra dos sentires
perdido no movimento azebre,
fulguras da tristura ocasional
de um tempo passado
sem prazer.

suave na sua mudez,
a terra olha-te em silêncio.

escutas a voz do perigo
entre o bem e o mal,
consegue pousar
do lado da luz
no frio que te dá ordens

do coração saltam feridas
devoradas pelo infinito

já nada sentes
embriagado na música inaudível,
expeles do teu corpo uma seiva amarga,
e imploras para renascer
de um ventre sem rosto

aguardas na praia que a maré vaze,
encontro-te.

dou-te a minha mão!

O QUE É VOAR? ( Ana Hatherly )

 Que é voar?

É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência

E isso é voar?
Não.

Voar é humano
é transitório, momentâneo.

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.


O BEIJO ( Paul Éluard )(tradução: Egito Gonçalves)

 Ainda toda quente da roupa tirada

Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
vagamente mas em toda a parte

Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo

Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.

PRIMEIRO POEMA ( Pere Gimferrer ) (tradução: Nicolau Saião)

 Eu, que fundei todos os meus desejos

sob vários géneros de eternidade,
vejo a minha sombra crescendo ao sol de Julho
sobre o pavimento de cristal e de prata,
enquanto numa baforada ardente
a morte ocupa o seu lugar debaixo dos guarda-sóis.
O vime, as bebidas de cores vivas, as luzes oxigenadas que pingam devagar,
banhando num obscuro esplendor os torsos, acariciando
com fulgores de ferro luzente uns ombros nus, uns olhos eléctricos,
um doirado tombar de mão no ar silencioso
o resplendor de uma cabeleira caindo desalinhada
entre música suave e luzes indirectas,
todas as sombras da minha juventude
numa habitual figuração poética.
Às vezes, nas tardes de tormenta, uma aranha avermelhada pousa
nas vidraças
e pelos seus olhos são fixamente olhados os bosques enfeitiçados.
Salas interiores, mágicas para os silenciosos guardiões de ébano, felinos
e nocturnos como senegaleses,
cujos passos quase não soam no meu coração!
De noite não se acordam os melros do seu prateado sonho.
Assim são estas horas de juventude, pálidas como ondinas
ou heroínas de ópera,
tão frágeis que morrem não de viver mas de sonhar.

No seu envoltório de veludo obscuro dorme o príncipe.
Abandonados caracóis na sua mão se entrelaçam. Fundamente caídas
as pestanas velaram os seus olhos como uma gota de verniz e de amianto.
A escondida tepidez das coxas faz deslizar o seu suspiro de gavião agonizante.
O peito arfa como uma harpa desfolhada no Inverno e sob o casaco de malha
o coração deixa suavemente de bater.
Amados olhos, doces horas de ferro e de fogo
rosas de carne incandescente e delicada, fulgores de magnésio
que me surpreendeis a sombra nos bares nocturnos ou ao sair do cinema, salvai
meu coração em agonia sob a luz pesada e densa dos holofotes!

A noite cai como uma fina lâmina de aço.
É a hora em que o ar põe as cadeiras em desordem, revolteia sob os toldos
faz tilintar os copos, parte um ou outro, roça regressa suspira e de repente
esmaga um homem contra uma parede com um surdo estalo repercutido.

Beija-me entre a névoa, minha amada. Ficou a noite tão fria
neste par de horas. Está o luar tão borrascoso e tão húmido
como numa antiga fita de amor e espionagem.
Deixa-me guardar entre as mãos uma estrela do mar.
Que pele tão delicada tu rasgarás com os dentes. Morte
que lábios, que respiração, que peito doce e mórbido

tu afogas.


O MARINHEIRO EM TERRA(Isabel Meyrelles)(Trad.:Natália Correia)

 IV

O Havre era azul de sol
cinzento só nos teus olhos
e na torre radar
grandes barcos
deixavam tranquilamente
o porto
iam todos para o Brasil
na praia seixos desconfortáveis
e o teu corpo imóvel
junto do meu
ocultos pelas crianças
e pelos transístores
os outros
o teu corpo tinha um gosto salgado
de lágrimas recolhidas
um paladar de saudade
a areia rangia entre os meus dentes
à noite fomos ao cinema
na avenida ao alto
as árvores fechadas à chave
como os assassinos
e os marinheiros rebeldes
em baixo
o molhe cercava cegamente o mar
toda a noite
ouvimos as sereias

PENSÃO MAR LINDO, 206 ( Manuel de Freitas )

 Talvez já tenha falado disto.

As horas de noite ainda
numa pensão litoral, fugindo
ao desespero que me abraça.
Não, não tenho mais metáforas.
O teu corpo, mesmo, foi uma
salvação indevida. Acontece.
Acontece muito, aos corpos.

Das almas não sei falar ─ mas
ouço o mar, o tecno vindo
de um bar onde outros (mais
felizes?) agora se engatam
e adiam a manhã e a morte,
sob a frágil ameaça de Setembro.

É lá com eles, lá comigo, a
casa para onde regressam
ou o lugar esquivo que não tenho.
Tanto faz ─ e antes felizes, claro,
como eu julguei ser na tristeza
de outros meses acabados.

Não me importa. Nunca estive
aqui. Que os vinte e cinco
anos do teu corpo não soçobrem
tão depressa, tão mal assim
─ entre ruídos que não sei.


 


by Catarina Sotto Mayor

 gosto dos dias

onde faltam palavras

ausência de toque

abstinência de voz.


gosto quando a matéria ocupa

meu corpo

me plissa a vulva

e me retorna para a fala.


by Rupi Kaur

 por que

você deixou uma porta

escancarada

aberta entre as  minhas pernas

ficou com preguiça

perdeu a hora

ou de propósito me deixou incompleta


- conversas com deus



by Rupi Kaur

 pela escada

na sala sagrada

ela encontrou

deus

a varinha mágica

a língua da serpente

sorrindo dentro de si mesma 


- quando a primeira mulher fez mágica com os dedos


by Rupi Kaur

você quer

esconder o sangue e o leite

como se o seio e o ventre

não tivessem sido seu alimento 




28/09/2024

PARA TI ( Mia Couto )

  Foi para ti

que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

XXXII ( Hilda Hilst )

 Por que me fiz poeta?

Porque tu, morte, minha irmã,
No instante, no centro
De tudo o que vejo.

No mais que perfeito
No veio, no gozo
Colada entre eu e o outro.
No fosso
No nó de um íntimo laço
No hausto
No fogo, na minha hora fria.

Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana ideia de um deus que não conheço
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo.

COM LICENÇA POÉTICA ( Adélia Prado )

 Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

by Rupi Kaur

 quero uma lua de mel comigo mesma

( Rupi Kaur )


A VIDA RESPONSÁVEL ( Amalia Bautista )

 Conduzir mas sem ter um acidente,

comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.

NÃO ME DEIXES MORRER LONGE DO MAR ( Margarida Vieira )

não me deixes morrer longe do mar
das vagas de palavras que me sussurras
quando fechas os olhos espraiando os lábios
e as tuas mãos são algas apetecidas

não me deixes morrer longe do mar
das asas aladas de pássaros vivos
que ecoam as noites em amor escritas
salgadas por temperos escondidos

não me deixes morrer longe do mar
das marés tão certas de incerteza
como a vida preceder o tempo
ou o horizonte ser infinito com rosto

não me deixes morrer longe de ti 




O HOMEM; AS VIAGENS ( Carlos Drummond de Andrade )

 O homem, bicho da Terra tão pequeno

chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?

idem
idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

DEUS TRISTE ( Carlos Drummond de Andrade )

 Deus é triste.


Domingo descobri que Deus é triste
pela semana afora e além do tempo.

A solidão de Deus é incomparável.
Deus não está diante de Deus.
Está sempre em si mesmo e cobre tudo
tristinfinitamente.
A tristeza de Deus é como Deus: eterna.

Deus criou triste.
Outra fonte não tem a tristeza do homem.

ESSAS COISAS (Carlos Drummond de Andrade )

 "Você não está mais na idade

de sofrer por essas coisas."

Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas?

As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer?

Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram fora de hora, e a hora é calma?

E se não estou mais na idade de sofrer,
é porque estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?

O MAR, NO LIVING (Carlos Drummond de Andrade)

 O mar entra no living

mal a primeira tinta
do dia se define.
Passa pelo vidro
e em pouco submergem
pessoas e tapetes,
poltronas, gestos,
nomes,
quadros,
vozes.

O mar tudo recobre
sem nada asfixiar.
No côncavo marinho
o ir e vir espelha
a vida costumeira
de peixes adestrados
que observam a lei
de viventes em casa.

Ao meio-dia, o mar
instala-se completo
nos metais e na pele
dos moradores.
Deixa esparso no ar
um tremor de prata
incendiada.

Pela tarde singramos
o mar e nos quedamos
na mesma onda imóvel
que na beira dos copos
junto ao álcool dourado
a amargura do sal 
sem que sal se perceba.

Quando a noite descerra
as pétalas de sombra
sem recorte sonâmbulo
de lua sobre as águas,
e o sono deposita-se
em cada castiçal,
cinzeiro, campainha
e dobra de cortina,
e os passos amortecem
no surdo corredor,
eis que o mar se retira
para si mesmo e longe,
ou nós é que emergimos
da espessura das águas
tornadas invisíveis.

O mar chega de volta,
mal a primeira tinta
se define, do dia,
e o living, baía, 
com todo o mobiliário
e pessoas, imersos,
prossegue o balouçante
estar sozinho e verde,
verdissozinho imenso
em pura escuridão.