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setembro 28, 2024

O MAR, NO LIVING (Carlos Drummond de Andrade)

 O mar entra no living

mal a primeira tinta
do dia se define.
Passa pelo vidro
e em pouco submergem
pessoas e tapetes,
poltronas, gestos,
nomes,
quadros,
vozes.

O mar tudo recobre
sem nada asfixiar.
No côncavo marinho
o ir e vir espelha
a vida costumeira
de peixes adestrados
que observam a lei
de viventes em casa.

Ao meio-dia, o mar
instala-se completo
nos metais e na pele
dos moradores.
Deixa esparso no ar
um tremor de prata
incendiada.

Pela tarde singramos
o mar e nos quedamos
na mesma onda imóvel
que na beira dos copos
junto ao álcool dourado
a amargura do sal 
sem que sal se perceba.

Quando a noite descerra
as pétalas de sombra
sem recorte sonâmbulo
de lua sobre as águas,
e o sono deposita-se
em cada castiçal,
cinzeiro, campainha
e dobra de cortina,
e os passos amortecem
no surdo corredor,
eis que o mar se retira
para si mesmo e longe,
ou nós é que emergimos
da espessura das águas
tornadas invisíveis.

O mar chega de volta,
mal a primeira tinta
se define, do dia,
e o living, baía, 
com todo o mobiliário
e pessoas, imersos,
prossegue o balouçante
estar sozinho e verde,
verdissozinho imenso
em pura escuridão.