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28/03/2025

INVENTO ( Maria Tereza Horta )

 Deponho

suponho
e descrevo a pulso

subindo
pela fímbria do despido

Porque nada é verdade
se eu invento
o avesso daquilo que é vestido

O VENTO ( A. M. Pires Cabral )

 É fácil dizer que o vento

tem gatos na voz

enfurecidos.


Que afaga e despenteia,

traz a chuva.


Que levanta as telhas,

exercita na noite

os nossos mais pesados

pesadelos.


É fácil ser poeta

à custa do vento.


Fingir que não sabemos

que o vento não é senão

o vazio que muda de lugar.


ADEUS ( Eugénio de Andrade )

 Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

e o que nos ficou
não chega para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza de que todas as coisas
estremeciam só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.

NÃO ME DEIXES MORRER LONGE DO MAR ( Margarida Vieira )

 não me deixes morrer longe do mar

das vagas de palavras que me sussurras
quando fechas os olhos espraiando os lábios
e as tuas mãos são algas apetecidas

não me deixes morrer longe do mar
das asas aladas de pássaros vivos
que ecoam as noites em amor escritas
salgadas por temperos escondidos

não me deixes morrer longe do mar
das marés tão certas de incerteza
como a vida preceder o tempo
ou o horizonte ser infinito com rosto

não me deixes morrer longe de ti

EFICÁCIA ( Inês Lourenço )

 Os novos campos de extermínio

são servidos ao jantar
pelos canais noticiosos. A cólera
e a malária entre Goma e Munigi
acometem-nos na impotência e no remorso
da toalha, cientes que ficamos
da desidratação e dos dejectos
e da dificuldade de encontrar a veia
num moribundo. No sofá do nosso apartamento
passamos às posições dos sérvios
na Bósnia e lateja-nos nos ouvidos
o efeito da limpeza étnica,
ao som familiar e eficaz
da nossa máquina de lavar louça.

MAIO DE 68 ( Vasco Graça Moura )

 um belo dia em maio

de sessenta e oito, tempo
feito de equívocos,
em alfama, as vizinhas conversavam.

a roupa secava ao sol.
os filhos estavam na escola.
elas falavam dos maridos.
e comentavam luísa, a

apanhadora de malhas em meias,
com o marido fora há dez anos,
sem dar notícias. tinha havido
desordens entre quatro

homens daquele bairro, por causa
de luísa, que os
ignorou e continuava a
cuidar do filho e a

apanhar malhas, sossegadamente,
na janela do rés-do-chão,
inclinando a cabeça como
a rendilheira de vermeer.

estavam as vizinhas
nisto, deplorando
o desperdício da
juventude de luísa,

por absurda esperança e
por delicadeza
assim perdendo a vida, quando
se aproximou um estranho.

deitam-se a adivinhar.
aquele bem podia ser fernando,
marido de luísa
e alvoroçaram-se e um cão ladrou.

no beco, entre
os potes de sardinheiras
e a roupa ainda a secar,
estavam enganadas, mas

tinham razão num ponto:
era um marinheiro grego,
exausto, ainda a ofegar,
depois de uma cena de porrada

das antigas, que não tinha
nada a ver com luísa,
mas que se
chamava odisseus.

MANTÉM A TUA MÃO ( Paula Tavares )

 Mantém a tua mão

No rigor das dunas
Andar no arame
Não é próprio de desertos

Cruza sobre mim
As pontas do vento
E orienta-as a sul
Pelo sol

Mantém a tua mão
perpendicular às dunas
E encontra o equilíbrio
No corredor do vento

A nossa conversa percorrerá oásis
Os lábios a sede

Quando saíres
Deixa encostadas
As portas do Kalahari.

PEDAÇOS DE MIM ( Martha Medeiros )

 Eu sou feito de

Sonhos interrompidos
detalhes despercebidos
amores mal resolvidos

Sou feito de
Choros sem ter razão
pessoas no coração
atos por impulsão

Sinto falta de
Lugares que não conheci
experiências que não vivi
momentos que já esqueci

Eu sou
Amor e carinho constante
distraída até o bastante
não paro por instante

Tive noites mal dormidas
perdi pessoas muito queridas
cumpri coisas não-prometidas

Muitas vezes eu
Desisti sem mesmo tentar
pensei em fugir, para não enfrentar
sorri para não chorar

Eu sinto pelas
Coisas que não mudei
amizades que não cultivei
aqueles que eu julguei
coisas que eu falei

Tenho saudade
De pessoas que fui conhecendo
lembranças que fui esquecendo
amigos que acabei perdendo
Mas continuo vivendo e aprendendo.

POEMA AGRESTE ( Glória de Sant’Anna )

 Não sei por que buscas palavras longas

para as coisas breves que nos assombram.

Não sei por que teces teias enormes
para as incertezas que nos envolvem.

Não sei por que insistes. Não sei porque insistes
em prender meus passos nesse limite.

UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO ( Manoel de Barros )

 I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II

Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.

III

Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

IV

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:

Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

V

Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

VIII

Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X

Não tem altura o silêncio das pedras.

26/03/2025

VONTADE ( Edgardo Xavier )

 Despida de roupa

e de falsidade
quero a nudez pura
na plenitude da tua pele
acesa
Quero-te assim
iluminada e tensa
como quem pensa
que me pode perder
e só me tem a mim

FALA - ME DE TI ( Edgardo Xavier )

 Fala-me de ti

com acentos de mar
e jeito de vento
Fala-me com a doçura dos beijos
queimando a minha pele
na ânsia do tormento
em que me gasto
expectante

As minhas palavras de amor
escreveste-as na areia
e perderam-se
as que me vieram de ti
ainda correm no meu sangue
como emocionada lava
ardente

Fala-me de ti
com o peso dos silêncios
Porque inúteis são todas as palavras
no arrepio de vontades e sedes
ou quando te recupero
das redes do amor
e te gasto
combustando-me
no teu fogo

Fala-me de ti.

AO TOQUE BREVE ( Edgardo Xavier )

 Ardo ao toque breve do teu dedo

E o mundo estremece
Vai e volta
Desaparece
No sangue ao rubro
Do meu mármore jacente
Sou o homem
O adolescente
Que traz a força de um raio
E se desfaz em lava
Incandescente
Que vê na tua boca
Uma porta do paraíso

O GRITO DO SILÊNCIO ( Célia Moura )

 Se o preço a pagar

És tu
Meu lírio ao alvorecer
Dos sentidos
Meu sangue
Este sémen
Que grita
Festa de germinação
Pois que seja!
Se o preço a pagar
É o silêncio da tua dor
Irmão
Eu fico a dever!
Penhoro
Todas as pérolas
Viverei das migalhas
Na miséria da matéria
Mas na liberdade
Do ser
Vomitarei a náusea
Indignação de todas as vísceras
À condição animal de mim!
Ah, não me digam
O que tenho ou não que dizer!
Não o direi, não o farei!
Podem decepar meus galhos, minhas flores
Expor minha nudez no vosso circo
E gargalhar até às lágrimas,
Podem pintar-me de gratuitas aberrações
Podem até arrancar minha raiz
Mas saibam que não será no meu grito
Mas sim no silêncio
Que deixarei semente.
Eu pago o preço!


 

25/03/2025

DESCOBERTA NO ESPELHO ( Iracema Macedo )

 Tua pequena varize

se insinuando na perna
fino rio de sangue azul
onde as tristezas navegam

herança de tua avó, de tua bisavó
marca do teu trabalho
do trabalho delas
cicatriz do filho que esperaste
e das escadas que subiste

tua pequena varize
não é doença ou velhice
mas antes sinal de beleza
irmã dos rios, dos navios e da chuva
irmã de todas as coisas
que ultrapassaram limites

O ESPANTALHO ( Iracema Macedo )

 Ao meu redor cresce verde a lavoura

e eu sou de seca palha

Ao meu redor homens se movem e trabalham
e eu resisto imóvel ao meu ofício triste

Estou cercado de arame por toda parte
por toda parte assusto pássaros que amo

Meus braços estão abertos para o espanto
não para o trabalho ou o abraço

Meu corpo de palha seca
nunca sentiu a volúpia dos bichos

Vivo abismado e só
escancarado sob a luz dos astros

ZILA ( Iracema Macedo )

 Nessas águas que entrei a vida inteira

Não busquei nem arcas, nem peixes, nem tesouros
Só quis a branda viração das ondas
E a branca luz dispersa sobre o mar

Tentei achar um abrigo
Me queimei em caravelas
Senti dor, medo, frio
Esqueci todo perigo

Nessas águas que entrei
Aprendi a ser espuma
Aprendi com as ondas a perder e a perdoar

E quem aprendeu assim a navegar
Quem se apartou da terra desse jeito
Não sabe mais como voltar

INICIAÇÃO ( Iracema Macedo )

 Enquanto ele acalma os olhos com colírios

recito o poema de Laura
desfilo sem pudor
em sua frente
exerço meus ritos, meus mitos
meus vícios
Me atiro inteira
trapezista de circo
e meu salto deixa os marujos confusos
mancho os lençóis com meu sangue
me entrego
sinto o fulgor gelado do champanhe
Não tenho mais medo nem susto
por entre atalhos escuros e secretos
um homem belo me busca e me fareja
cegamente escravo dos meus versos

FEBRE ALTA ( Iracema Macedo )

 No forno de tua casa

quero acender minhas palavras
nas dunas que te cercam
esconder minhas armas
de motocicleta rondas e rondas
minha juventude
pai dos filhos que não tive
pai do meu riso e pranto
Saudade de tudo que sou
e canto

LUNÁTICA ( Iracema Macedo )

 Esqueci meu vestido

na casa do homem que amo
esqueci os sapatos, o pente
os fios dos meus cabelos
minha calma ficou lá estendida no quintal
entre manjericão e pitangas
quero a brisa forte dos seus olhos
e a ventania do seu peito
destravando minhas âncoras

BACANTE ( Iracema Macedo )

 Em meu ninho longínquo

inicio ventos
invento cios
canto e danço em volta do fogo
transformo meu leite em vinho
e ofereço meu corpo para os lobos

O RITO DE CARMEM ( Iracema Macedo )

 Ela é uma forma de alucinação

de hino ao perigo
e ao furor
Perfuma-se com um poema
e se apronta
como quem vai ao cinema

Parece que não há riscos
em tudo que ela faz
mas ela acorda e dorme
sitiada
Mulher em que se atira facas
ela recebe os golpes um a um
Arremessos de perda, luxúria, ciúme

No centro do picadeiro
Um homem de olhos vendados
ameaça matá-la
todas as noites
diante dos aplausos inocentes

MARICÁ ( Iracema Macedo )

 Estou entre açaí, graviola, anhangá

pitaya, seriguela, cajá
cupuaçu, milho pipoca, pará
tapioca, pitomba, acerola, inah
irapuã, jaci, marabá
jambo, acarajé, cará
curupira, caipora, boitatá
Vim de oxum e iemanjá
tupã e orixás
estou entre guabiroba, tapereba e araçá
e essas palavras ninguém me pode roubar

DISTÂNCIAS ( Conceição da Costa Neves )

Dos meus aos teus braços
o caminho é bem curto.
Nossas bocas fazem o encontro
do desejo incontido e longo.
Depois, tudo é posse louca.
Músculos, carinho, seiva.
Paixão da carne que transvasa
nas vontades de todos os tempos.
Terminou. Músculos lassos. Vontades esgotadas.
É longo agora o caminho dos meus
para os teus braços.



O CORPO ( Sônia Barros )

 Nenhum dos dois

nunca soube explicar
- mesmo dez anos depois,
não sabem.
Tampouco tiveram
coragem de olhar
para baixo e ver
        o corpo
        estatelado
        em meio
        aos estilhaços.

Ele se mudou, ela ficou
no apartamento-trampolim
conservando por algum tempo
janelas e olhos fechados.

Nas raras vezes
em que se encontram,
quase sempre por acaso,
evitam palavras
ou mesmo olhares
que possam trazer
a dor à tona.

De vez em quando
ainda se lembram,
mas cada vez com menos
nitidez,
daquela tarde
de chuva
em que viram, perplexos,
saltando da janela
para o abismo:
a taça de vinho tinto,
onde boiava,
já morto,
o amor.

PELE QUE HABITO ( Lubi Prates )

 minha pele é meu quarto.

minha pele é todos os cômodos
onde me alimento onde deito finjo
  o mínimo conforto.

minha pele é minha casa
com as paredes descobertas
  uma falta de cuidado
: necessita sempre mais
para ser casa.

minha pele não é um estado
desgovernado.

minha pele é um país
embora distante demais   para os meus braços
embora eu sequer caminhe sobre seu território
embora eu não domine sua linguagem.

minha pele não é casca
é um mapa: onde África ocupa
todos   os   espaços:
cabeça útero pés

onde os mares são feitos de
minhas lágrimas.

minha pele é um mundo
que não é só meu.


VERTENTE ( Sônia Barros )

 Há vozes que vêm para o poema

mas não foram convidadas, surgem
como luz soprada por lábios de um sol improvável,
música inusitada a nascer num jorro que rasga
e fecunda o solo solitário das palavras.
Há verbos que invadem, perfuram o osso
do poema e do poeta — feito o zurrar de um asno,
como em Balthazar, de Bresson — e permanecem
tamanha a correnteza de seu gozo.
Vermeer, Moça com Brinco de Pérola (1665-1666)