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25/05/2025

ARPEJOS ( Ana Cristina Cesar )

 1

Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho

examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus

olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem

significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa

e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente

meus projectos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim

poderia reactivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.

2

Ontem na recepção virei inadvertidamente a cabeça contra o

beijo de saudação de Antônia. Senti na nuca o bafo seco do

susto. Não havia como desfazer o engano. Sorrimos o resto da

noite. Falo o tempo todo em mim. Não deixo Antônia abrir

sua boca de lagarta beijando para sempre o ar. Na saída nos

beijamos de acordo, dos dois lados. Aguardo crise aguda de

remorsos.

3

A crise parece controlada. Passo o dia a recordar o gesto
involuntário. Represento a cena ao espelho. Viro o rosto à
minha própria imagem sequiosa. Depois me volto, procuro nos
olhos dela signos de decepção. Mas Antônia continuaria

Inexorável. Saio depois de tantos ensaios. O movimento das
rodas me desanuvia os tendões duros. Os navios me iluminam.
Pedalo de maneira insensata