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28/07/2024

COMO UMA FLOR VERMELHA ( Sophia de Mello Breyner Andresen )

 À sua passagem a noite é vermelha

E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.

26/07/2024

DEIXA O SOL SAIR ( Djavan )

Dia inteiro de olho nas nuvens
Em qual delas eu vou te ter um dia?
Passageiro de todas as nuvens
Eu navego com você a me guiar
Quero ver quem vai ser
Será eu ou você
Quem será
Que decide a barreira romper?
Nosso olhar quer falar
Mas o medo é demais pra agir
Deixa o amor resolver por nós
Deixa o sol sair
Tudo é tão claro em mim
Sei que é amor
E será fundo como o mar
Vai acender uma lanterna no escuro
O que vai ser o mundo
Com o que temos
E nos falta receber?
Vai ser você e eu enfim naquela nuvem
E o que o amor vai poder ajudar
Quando a noite chegar?
Mesmo que chova
O que eu tento explicar
É que sem você não há lugar
Você me marcou, não vou dizer
Que fazer, vou sair?
Nem pensar
Recolher, desligar
Vou dormir mais cedo
Eu só sei o que sou
Se viver pra te amar
Body and soul, meu amor

24/07/2024

DOIS SENTIDOS ( Lúcia Serra )

 Quando

permeias

na geografia

(acidentes

planícies

matas

e rios)

é em braile

que tu me lês

atento e sôfrego

decifrando

incógnitas

tateando sílabas.

De olhos fechados

(e cego de desejo)

o amor

medra

na paisagem

os

ícones

de seus próprios

passos.

Signos.


SEMEADURA ( Lúcia Serra )

 erva

de
tua
faina
semente

vertida

Se
esvaindo
na
seara
de
meus
pastos.


CAVALGADA ( Lúcia Serra )

 a ânsia

com a qual

me bebeste

(mel e absinto)

atiçou

cavalos

percorrendo

pradarias.

turbulência

na paisagem

(mescla da tarde

e ventania)

acossando

na encosta de morros

o murmúrio

de riachos e minas

(líquidos ruídos).

paia o galope

não há trégua

o êxtase

evola

das

narinas

pelos

hálito afoito

suor

caldas

e crinas.

batida de cascos

matinada

e relinchos

confluência

de sentido

e sina

no encalço

do acaso.

POEMA 14 (Alice Vieira)

 Toma-me ainda em tuas mãos e

não perguntes nada

nem sequer dês um nome aos gestos que se abrigam como um fruto uma promessa um murmúrio
nas fogueiras ateadas em junho


juro que vou escolher palavras que não doam parecidas com as que sempre encontrava
nas camas em que tantas vezes te enterrei
por dentro do meu corpo

 

toma-me ainda em tuas mãos eu sei que
temos pouco tempo que não queres
inventar novos ardis para um desamor tão velho
mas vais ver

o mundo é apenas isto    e para isto

não procures nenhuma filosofia redentora

porque tudo é no fim de contas tão banal

 

podes por isso começar a refazer a estrada que
te levava ao centro dos meus dias e esperar
que eu chegue com um retrato desfocado nas mãos
na hora certa de abrir para ti as minhas veias

IMPUT ( Laís Corrêa de Araújo )

 Do  leque  de  dedos

escolher  um
                  ou dois
                  ou três

Romper  o  zelo
do  selo
           onde  ele
           não  há

VOCABULÁRIO ( Laís Corrêa de Araújo )

 Gosto  das  palavras

           infecto  e  nauseabundo
—  palavras  que  silabam
     em  rude  contraponto
     a  avaria  do  mundo.

De  umas  palavras  quentes
                      — casa, cama, mesa —
      que  escapam  pretéritos
      e  futuros  presentes
      em  sua  reta  clareza.

Certas  partes  do  corpo
      que  bem  que  sonorizam:
      —  púbis,  hímen,  vagina  —
      palavras  que  batizam
      a  encoberta  mina.

E  gosto  de  orgasmo
      palavra  atravessada
      como  um espinho  agudo
      que  rascante  lateja
      um momento  de  pasmo.

Também  gosto  de  enfarte
      — palavra  lancinante
      que quando  se  presenta
     nem  se  diz  —  e  parte
     a  vida  num  instante.

22/07/2024

XVII ( Luíza Mendes Furia )

 Amanheço com o teu beijo de sol

Enquanto é a lua
que ainda esplende nos meus olhos
fechados
esbraseados pelo ardor da tua voz.
O amarelo-purpúreo-alaranjado
das palavras
aquece, súbito, meu ouvido
— poço de silêncio num profundo azul.

E aos poucos cada poro se transforma
da mais mínima estrela
em translúcida rosa.

Entardeço em saudades espraiadas
— pólen que o vento esparge na cidade
para semear pontos de luz por toda parte.

IV ( Luíza Mendes Furia )

Para teu corpo

teu porto
ansioso por navios
me faço água

suave, me deito
em tua terra
e corro pelos vãos
das tuas pedras

Ágil, ardente
de vento me faço
e quero
inaugurar o fogo
em tuas trevas

II ( Luíza Mendes Furia )

 Nada te peço, porém

aqui tens o que desejas

Uma lâmina de luz sobre o espelho
a lua no parapeito
a argamassa da noite
a aquarela do dia:
desenhos do sol na parede
o fogo subindo na tarde
a música a fazer uma teia
no telhado do silêncio

Eis a minha casa.

Nada te peço, porém
aqui tens o que desejas

A moringa sobre a mesa
Maçãs na cesta de palha
Vinho no copo de prata
Este pão, este alimento

Minha boca feito fruta
delibando a tua fala
E meu corpo feito potro
feito moço, feito doce,
feito poço e labirinto.

SE SEU SEXO ( Marize Castro )

 Se seu sexo grisalho me convida a morrer

eu aceito, abro-me: ninho e pântano

seus olhos me comem, abandono cidades
   — circulo o antigo átrio —

em cada pedra, um gozo com sua âncora
em cada alvorada, a fé mais primitiva

eternidades existem?

perguntam velhas moças dentro de carrosséis
imortalizadas no mais alto céu

BAILES SUBMERSOS 2. SOLO COM CHAMPAGNE ( Raiça Bomfim )

 Hoje eu sou aquela que voltou

do continente
a que caminha na praia remota
em plena madrugada
o vento patinando seu cachecol
a fina moça das areias

Hoje sou aquela do sapato perdido
na onda arrematada
a que traga a última réstia da lua
desnuda-se com toda a classe
e deita-se no mar
pra estudar a língua dos peixes

NA SUPERFÍCIE ( Marina Rabelo )

 na superfície

do nosso encontro
ficaram teus medos.
teus dedos covardes
apontando todas as armas,
o arame farpado da desilusão
traçando longos voos de volta.
os riscos caíram rasos
sobre nossos pés.
aquele velho c'est la vie
enquanto eu só queria, baby,
meu corpo deslizando sobre o teu
e o cheiro do talvez, quem sabe.

DUO (Rosa Ramos )

 O trágico

funâmbulo
com seu
tentáculo
insólito
vai trôpego
ao encontro
da moça
sonâmbula.
Sua nádega
balança
na corda
nem firme
nem bamba
a linha
dinâmica.
Das faces
as pálpebras
caem
no etéreo
instante.
Caem
unânimes
os dedos
de plasma.
Joelhos
desmontam.
Dois pés
falseiam
diante
da moça
fantasma.
O trágico
funâmbulo
desmaia.
Desaba
no vácuo
de amor
que a moça
inventa
com passos
de pânico.

DESDE O CHÃO ( Eugénio de Andrade )

 A pele porosa do silêncio

agora que a noite sangra nos pulsos
traz-me o teu rumor de chuva branca.

O verão anda por aí, o cheiro
violento da beladona cega a terra.
Cega também, a boca procura
trabalhos de amor. Encontra apenas
o nó de sombra das palavras.

Palavras... Onde um só grito
bastaria, há a gordura
das palavras. Palavras —
quando apetecem claridades súbitas,
o sumo estreme, a ponta extrema
do teu corpo, arco, flecha,
corola de água aberta
ao fogo a prumo do meu corpo.

Do chão ao cume das colinas,
eis as areias. Cala-te.
Deita-te. Debaixo dos meus flancos.
A terra toda em cima. Agora arde. Agora.

MODO DE AMAR ( Astrid Cabral )

Amor como tremor de terra


SEM TÍTULO ( Natália Klussmann )

 A relva

Úmida de orvalho
Enverga cada lâmina
(pequenas línguas em um deleite absoluto)
Até que se desprenda o gozo
Da noite,
Do sereno,
Da madrugada.
E nós, insones,
Insaciáveis,
Repousamos nossa nudez
No orgasmo da natureza.

EXERCÍCIO FÍSICO ( Laryssa Carreiro )

 sinto umas paradas que parece que

esquenta a gente de dentro pra fora
escorre pelas pernas, feito cash
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ chu
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ ei
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ ra
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ arrepia os pelos

seca a gar gan ta

molha a calcinha

tem sabor ácido
de suor com erva-daninha

evapora a realidade

traz sorte e prosperidade

faz bem pra ansiedade

REEDUCAR - SE (João Melo )

 sem competição

dentro de casa

fora de casa

buscar um empate
o melhor resultado

um aprendizado
de cheiros, permissões

me estuda
e me chupa
e me lambe
e me fode, enfim

suor, sussurros
exercícios exauridos

e tudo te devolvo
na ponta do lápis
na ponta da língua
o gozo

juntos, sem pressa
a procurar
todos os líquidos
todos os lábios
todas as letras
da igualdade

NA PONTA DA LÍNGUA ( Janaína Steiger )

 na ponta da língua

o poema preferido
um verso famoso
a última música chiclete que explodiu

na ponta da língua
poucos contatos de emergência
datas de aniversário
duas ou três cifras de violão

na ponta da língua
uma receita bem simples
a fórmula de bháskara
tabuada alfabeto e olhe lá

na ponta da língua
o relevo da pele
todas as linhas do corpo dela
desenhadas pelo grafite

da ponta da minha língua

REVOLUÇÃO ( Janaína Steiger )

 8 mil terminações nervosas ali

70% das mulheres sem conseguir chegar lá

é revolucionário mas não devia
fazer uma mulher gozar

SONETO DE ANUNCIAÇÃO ( BF )

 Despida do seu manto virginal,

Maria deita-se mole na baia.

Os dedos procurando o grelo santo
sob a renda pasmosa da calcinha.

Entre as curvas altas de suas coxas,
Maria embala o sêmen que a deseja.
Perfume de milagre anunciado,
o Anjo, em felação, missa corteja:

“Escute o cuspe amargo na alcova
que fecunda o Corpo-Sangue salvador,
e faça dele o Filho da Nova Era.”

Maria, olhos no céu, boca seca,
geme e se engasga com o fervor
de quem ama o sacramento da Matéria.

LISTA DE PREFERÊNCIAS ( Bertold Brecht )

 Alegrias, as desmedidas.

Dores, as não curtidas.

Casos, os inconcebíveis.
Conselhos, os inexequíveis.

Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.

Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.

Domicílios, os passageiros.
Adeuses, os bem ligeiros.

Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.

Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.

Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.

Cores, o rubro.
Meses, outubro.

Elementos, os fogos.
Divindades, o logos.

Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.

A MULHER DE LOT(Wislawa Szymborska)(Trad.: Regina Przybycien)

Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.